quinta-feira, dezembro 14, 2006

É assim a vida de um escritor que não tem vez...

Cheguei bem cedo na faculdade. Aquela hora era ideal para esse tipo de coisa. No hall, reconheci algumas caras, mas preferi ignorá-las. Segui direto para o segundo andar, espreitando pelas pequenas janelas das portas, procurando a sala perfeita, a sala vazia. Incomodava-me a fisiologia humana e suas necessidades mais urgentes, como sentir sede... ou como cagar, o meu caso. No entanto, não retrocedi no meu plano. Faria primeiro o que tinha vindo fazer e só depois falaria com o ‘senhor bocão’, uma expressão idiota que aprendi por aí, e não quando pequeno, com a minha mãe. Mas no meio desses pensamentos todos, enquanto cruzava um longo corredor, meus olhos de águia – sempre falei isso aos outros sem razão aparente – captaram a câmara secreta dos meus sonhos. Minhas pernas apenas seguiram o trajeto traçado pelos meus olhos. Minha face se esticou e se enrugou toda num sorriso. A sala era realmente perfeita, arejada, com incontáveis – pelo menos naquele momento – cadeiras vazias e apenas os fantasmas silenciosos de quem já havia passado por ali. Tratei de sentar, despi-me na parte de cima. Verifiquei na bolsa os instrumentos de minha alegria, estavam todos lá, a carga da caneta, o papel branco, o isqueiro e o meu combustível, que às vezes penso ser infinito. Iniciei o processo com todo o cuidado, mas estranhamente tomado por uma pressa de quem tem fome. Estava atento aos mínimos detalhes, para que pudesse atingir o máximo no resultado. Por vezes, a distensão do meu reto me lembrava da minha vontade de cagar, mas isso ficaria para depois. De repente ouvi estalar a maçaneta da porta. Alguém estava preste a interromper o êxtase daquele instante. Cobri os instrumentos de meu regozijo. Entraram apressadas duas mulheres e se espantaram com a minha presença. Vestiam uniforme. Eram faxineiras. Disseram que iam apenas limpar o quadro. O que de fato fizeram. Depois se retiraram. A sala voltou à nitidez de suas cores. Posicionei-me na janela maior, no maior olho daquela sala. De onde pudesse ver o mundo lá fora. Já estava de posse de meus preciosos instrumentos novamente. O isqueiro vez em quando falhava, meu cu piscava de vontade de cagar, mas eu nem dava bola. Fiquei ali olhando a vida do lado de fora e quase achei bonita aquela confusão toda de sons e imagens e carros e gente e placas e vozes e postes e bancos e lojas e fotos e preços e números e letras e sabe-se lá mais o quê. Desconheço a razão, mas diante daquilo tudo, foi como se eu tivesse entrado em contato com deus, em quem ou ‘nuquinunca’ acreditei, foi como se todos fizéssemos parte de um só elemento. Mas me lembrei que tal elemento era defeituoso, opaco, sinistro e medonho. Disparei meu olhar perverso contra toda aquela desordem do lado de fora da sala. E doía-me saber que dali a pouco, teria de sair daquele ambiente quase uterino. E por falar em órgãos, os meus já se retorciam pela minha teimosia em não cagar. Foi então que decidi recolher os instrumentos e encarar pleonasticamente de frente, ou de lado, de quatro, sei lá, o mundo lá fora. Meus olhos traçaram agora o caminho do banheiro, para que minhas pernas pudessem alcançar nosso destino. Meu cu já estava impaciente, quando cruzei com as duas faxineiras, que me fitaram com olhos punitivos. Não entendi bem, preferi nem pensar. Continuei rumo ao banheiro, sendo cortado por lâminas de sol que atravessavam o corredor. Desci pela mesma escada que usei para subir, mas dessa vez, chegando ao hall, não consegui manter o anonimato. Uma rapaz me acenou e eu fiz que não vi, mudando meu percurso e prolongando ainda mais a ânsia do meu cu. Enfiei-me num outro banheiro, menor que aquele no qual pretendia ir. Apenas uma cabine, que logo tranquei, tendo de, em princípio, digladiar com mosquitos e sua orquestra de zunidos. Fui favorecido pela lei dos mais fortes e consegui espantar, se não matar, a maioria deles. Senti mais uma fisgada e minhas pernas cambalearam. Despi-me da calça e da roupa de baixo. Sentei no bocão do vaso. A primeira tira de merda foi uma mistura de dor e alívio. Meu piru acompanhou seu vizinho liberando um mijo ardido. A distensão do corpo foi instantânea. Cabines de banheiro também me agradavam. Eram pequenas, seguras, bem diferentes do mundo lá fora. E da cabine de um banheiro, a única coisa que mandamos para o mundo lá fora é a nossa merda. É como mandar o próprio pai tomar no cu quando ele comete uma injustiça muito grande. Estava mais calmo agora. Trancado numa cabine passando na cara do mundo lá fora a minha merda. Além disso, eu gostava de vasos sanitários porque me lembro que na infância, a minha mãe plantava rosas num deles, que ficava na varanda. Senti que aquele momento não podia ser acompanhado de outra coisa que não dos meus instrumentos. Tirei-os todos da bolsa novamente. Absolutamente admirável do que uma carga, uma folhinha branca, um isqueiro falhando e o meu combustível são capazes. Os poucos amigos que tenho podem confirmar, pois sempre me acompanham nas minhas aventuras. Estava bom demais. Mas, como na sala, alguém entrou no banheiro, arrastando algum objeto que não consegui identificar. Dava pra ouvir também os passos marcados no ladrilho do banheiro. Enchi-me de medo. Não podia ver nada além de uma sombra que dançava do lado de fora da cabine. Era bastante agonizante. Um chuveiro foi ligado e rapidamente a água se chocou contra o chão, o que me provocou paradoxalmente certo alívio, pois o som da água batendo naquela superfície azulejada me fez lembrar de chuva, do seu chiado constante, hipnótico, que inunda. Mas ao fundo, percebi crescer o som de uma sirene, de maneira intermitente. Senti um desespero. Tinha que sair logo dali. Certamente estavam atrás de mim. Foram as duas faxineiras que me denunciaram. Só então percebi que não tinha papel higiênico. Eu certamente estava encrencado. Pensei rápido. Olhei a privada. Hesitei em fazer, mas tinha que decidir. Guardei isqueiro, carga e combustível. Ainda podia ouvir as sirenes. Estavam mais altas, mais nítidas, mais próximas. Foi aí que tomei a folhinha branca agora preenchida de letras e passei no meu rabo com força, o que só me causou dor e nenhum alívio. Joguei o texto misturado com a minha merda na privada e puxei a descarga. Saí da cabine assustado, suarento, já sem a prova do meu crime, o meu texto que ninguém publica...


...porém, do lado de fora, não havia ninguém. Só o chuveiro ligado. Nenhuma sirene. Havia apenas aquele mundo lá fora.

(Setembro/2006)