domingo, abril 06, 2008

Mais um dos contos do novo livro

A flor de lótus

O cheiro das violetas faz acordar o dia em Sérgio. Isso depois de ter atravessado um certo estado de torpor, típico das manhãs, enquanto o sol, no lado de fora, rastejava lento parede acima, até encontrar o vão por onde penetraria a casa. E se não fossem violetas estas flores? Sérgio constata um tanto decepcionado que é um ignorante em floricultura. Nada pior do que reconhecer a própria insignificância logo na primeira hora do dia. Violetas, margaridas, Gardênias, azaléias, os nomes todos para o inferno, que eram todas flores, e o cheiro, das flores, e simplificado dessa forma Sérgio se sente um pouco melhor. Mas a angústia não o abandona tão facilmente, ele não sabe o que fazer de seu dia, porque não tem o que fazer mesmo, não trabalha, não estuda, não rouba, não mata, nada. O que existe talvez seja apenas uma espera daquilo que nem se pode prever. Sérgio encara um ponto remoto no teto do quarto, não há nesse ponto significado algum, ele é apenas um algo remoto mesmo, poderia ser qualquer ponto do teto, nem Sérgio, na verdade, sabe distinguir o ponto para o qual olha, dessa forma parece que o olhar de Sérgio vê no teto todo pintado de azul uma superfície transparente, e através desta um outro mundo, e com este outras verdades, e com estas outras mentiras. O teto todo pintado de azul, por sua vez, se tivesse olhos, veria, de uma posição privilegiada, todo o corpo de Sérgio estendido sobre a cama, a cara, os lençóis, o travesseiro, tudo isso amarrotado, enrugado, com aparência de algo já muito gasto, na mesinha um livro do qual se tem a impressão que nunca foi aberto, os cabelos de Sérgio parecem com os de uma boneca velha e maltratada, as pontas dos fios se enroscam em grossas espirais, algumas são verdadeiros tufos, naquele quarto só o teto é pintado, azul, Sérgio detesta essa cor, lembra muito a Ana, o resto do cômodo é mal conservado, e é incrível como Sérgio, nada preocupado com higiene pessoal, se funde perfeitamente com a atmosfera daquele quarto, deitado ali, pelos olhos do teto azul, - se os tivesse - Sérgio mais parece um objeto de decoração envelhecendo e se desgastando junto com o quarto e a mobília, só o teto, azul, que Sérgio detesta, resiste, seria uma lembrança?


... mas como não poderia deixar de ser, o despertador toca e parece que tudo vai começar, o corpo de Sérgio já se movimenta, desinteressado, pelo quarto, e estranhamente ele toma o fone do gancho, recebe um sinal, como costumam dizer, então Sérgio toca, com vários de seus dedos, indiscriminadamente, oito teclas, uma gravação surge no fone dizendo que não é possível completar a chamada com o número discado e, tão estranho quanto antes, Sérgio repete o processo, outra vez a gravação diz que o número discado não existe, ele olha a mão para se certificar de que ali não estava resquício de número algum, não, não há tinta de caneta borrada que lembre um número qualquer, então Sérgio segue até o banheiro, tentando enxergar no reflexo do espelho algo que não fosse propriamente um reflexo, mas um destaque, em vermelho, escrito a batom, um número para o qual pudesse ligar, seguido de um eu te amo sempre, mas não, nem ali nem nos bolsos, onde agora Sérgio enfia as mãos com ar desesperado na busca de um pequeno pedaço de papel, mas a senha não existe, então Sérgio disca mais uma vez de maneira aleatória, alguém está sendo chamado no outro lado da linha, esta pessoa se vê intimada a atender, ou melhor, condicionada, como um rato de laboratório em sua jaula levando choques para se alimentar, esta pessoa, como um rato, impulsionada por estímulo e resposta, atende ao chamado, Sérgio se irrita levemente com a rouquidão da voz, talvez esperasse um veludo sonoro, a voz que diz alô do outro lado da linha é rouca e masculina, então Sérgio logo pergunta se a pessoa não se espanta, a voz, aparentemente confusa, pergunta quem fala, pergunta do que se trata, Sérgio apenas repete a questão, a voz não se contenta, não se entrega, há aí um duelo estabelecido, Sérgio insiste, a voz não desiste, daqui a pouco talvez trovejarão palavrões, insultos desbaratados em linguagem binária, viajando em velocidade absurda pelos cabos de fibra ótica que ficam nos esgotos da cidade, Sérgio, antes de dizer ao outro o seu nome, pergunta se esta pessoa, esta voz, não se espanta, a voz se cala, o silêncio assim, ao telefone, tem uma angústia peculiar, então Sérgio tenta desferir um golpe de espada com sua verdade, que atravessaria os ouvidos do outro, Sérgio se indigna, pergunta se o outro não se espanta, o outro está inundado de dúvidas, e se for um trote sobre seqüestros?, e se Bia está agora nas mãos de um maluco qualquer?, o outro, que é Jorge, pergunta qual o motivo daquela ligação, se exalta até, depois de superado o susto, Sérgio não compreende o novo rumo da conversa, ele nem revelou ao outro, a Jorge, sua verdade, a espada desembainhada volta à bainha, Sérgio põe o fone no gancho, Jorge não é um nome estranho, não mesmo, ele já ouviu esse nome em alguma ocasião da qual agora não pode nem consegue se lembrar, isso ficaria para depois, e como tudo aquilo que é deixado para depois, talvez nem chegasse a ser algo, pelo menos é assim que Sérgio pensa, gosta de deixar tudo na iminência do não ser, ele faz absolutamente nada, imerge sempre na lentidão do dia, às vezes, com um relógio nas mãos, conta, doentiamente, os segundos avançados pelo ponteiro, que quando cumpre uma volta completa em torno do eixo faz avançar o minuto num ponteiro distinto, mais lento, claro, então depois, bem depois deste último ponteiro girar em torno do mesmo eixo de antes, badala a hora, numa lentidão as horas passam para Sérgio, ele acredita que o eixo sobre o qual giram os ponteiros é a essência do tempo, por isso fica sempre à espreita do relógio, tentando surpreender o tempo, quem sabe segurar com toda força o ponteiro algoz, quem sabe fazê-lo andar em disparada rumo ao futuro, então Sérgio fica ali, observando ponteiros, assistindo a um conjunto de pequenas engrenagens que ditam o ritmo de sua vida, já lhe disseram que era louco por esse aspecto peculiar de sua personalidade, ele respondeu que o ser humano era louco sobre inúmeros aspectos, soltando uma longa gargalhada depois, bem!, assim ele queria lembrar da situação, não foi bem desse jeito, mas enfim, isso não vem ao caso, Sérgio já quer fazer outra ligação, mais cedo quando acordou, teve vontade de escrever, mas lembrou que não sabia nem o início nem o fim, que só sabia o meio da história que ele queria escrever, julgou que assim de nada adiantaria escrever, então agora, seus dedos, que deveriam estar segurando uma caneta apoiada sobre uma folha e deslizando as formas das palavras, seus dedos agora digitam o dia de seu nascimento, talvez numa busca inconsciente do início, e Sérgio recebe enfim um alô feminino, a maneira como o A, aberto e soante, precede a consoante, o jeito como o L escorre pela língua, o modo como o Ô fechado encerra a palavra, Sérgio acha que pela primeira vez na vida está apaixonado, seu coração assumi uma freqüência alucinada de batidas, suas pernas fraquejam, os olhos pestanejam intermitentes, seu corpo todo amolece diante dessa nova situação, ela repete ao telefone a palavra com a qual fisgou Sérgio, que, como um peixe preso pelo anzol, responde em espasmos silenciosos, Sérgio está tomado de uma emoção imensa, não sabe lidar com tanto sentimento, o amor é um espanto constante, mas que precisa de cuidado para perdurar, ela, do outro lado da linha, cumprindo um protocolo universal das ligações telefônicas, ao perceber que ninguém responde, desliga, Sérgio demora um tempo até perceber que ela não está mais na linha, que na verdade nunca esteve, não existe mais alô, a emoção imensa contida em Sérgio precisa de uma válvula de escape, como se fosse uma panela-de-pressão, ele tenta discar mais uma vez, não se lembra do número, o aparelho não possui rediscagem automática e mesmo se tivesse, Sérgio nem saberia como usar, Sérgio nem mesmo sabe o dia em que nasceu, mais uma vez o início foge de Sérgio, de repente ele pensa em como seria sua vida se tudo não passasse de um conto, em como seria sua morte, até que página a trama duraria, Sérgio é um homem que brinca de inventar, a mulher por quem acabara de se apaixonar seria Ana, esse seria o nome que ele daria a ela, uma menina que só toca piano bem em casa, cabelos estendidos sobre as costas em cachos, filha querida de Lucas, com quem Sérgio teria uma relação difícil, Lucas de quê?, não importa, Lucas, o apóstolo talvez, mas não importa, ela teria brigado com a família inteira para ficar com Sérgio, assim ele contaria aos seus amigos num futuro qualquer, da mulher perfeita que já teve um dia, num alô, e que a flor de lótus o fazia lembrar de Ana, isso se Sérgio tivesse algum amigo, porque eles não existiam, e tal verdade desce rasgando como uma epifania pela goela de Sérgio, logo ele que ousou ferir alguém com sua verdade, qual mesmo?, agora está muito difícil, é tudo muito difícil, tanto que aqueles que se superaram estão como heróis na história, de herói Sérgio não tem nada, e eis que inesperadamente o telefone toca, sem que Sérgio perceba, vem então o segundo toque, igualmente imperceptível, então o terceiro o quarto o quinto o sexto a secretária, Sérgio reconhece a própria voz e se liberta de um estado de torpor que já durava algum tempo, é ele mesmo quem saúda, alguém de lá diz eu sei que você taí e eu sei que você não vai atender mas eu acho sacanagem me dar um bolo desses eu já tô indo embora e não quero que você me procure mais, mas essa voz Sérgio não reconhece, essa voz feminina, será Ana?, meu deus, quem será?, Sérgio não sabe nada, quer repetir a mensagem mas não sabe como mexer na secretária eletrônica, e já neste mesmo momento a campainha anuncia uma visita, Sérgio pega o telefone e disca o número da polícia, atendem, há apenas o ronronar dos carros num engarrafamento qualquer, um burburinho de vozes e passos, a orquestra ditada pelas buzinas dos automóveis, a campainha toca mais uma vez, na verdade duas, seqüencialmente, aparentando irritação, no telefone trêmulo nas mãos de Sérgio, aquele som de ambiente desconhecido permanece o mesmo, só que já se pode distinguir uma música, aliás, somente existe uma música, desconhecida, como o todo de que ela é parte, a campainha toca de novo e socos impacientes acertam a porta, Sérgio se assusta com tudo isso e o telefone lhe cai das mãos, ele se sente indefeso, totalmente desarmado, sua respiração ganha um novo ritmo, difícil, acelerado, ele acredita que está ficando sufocado, o ar lhe falta, enquanto aos socos e pontapés alguém insiste em ser recebido, Sérgio, à beira do delírio, pensa em Ana, vestida de preto, véu sobre o rosto escondendo a tristeza, prostrada à direita de seu caixão, aquele amigos todos para os quais Sérgio inventaria a história de Ana, é um momento tenso para Sérgio, e não se pode exigir tanto senso assim dele, a delicadeza da situação impõe uma lógica que a olho nu é ilógica, mas não, Sérgio não é nada ilógico, é apenas produto da delicadeza da situação a que está submetido, já agora, por sinal, ninguém mais deseja ser recebido à porta, às vezes pode parecer ilógico, mas basta atenção para perceber que não, Sérgio está encolhido num dos cantos da casa, dizem que ele é de câncer, ele fala sonoramente que é de leão, mas ninguém sabe a verdadeira cara do próprio bicho que é, e de repente dos olhos dele brota uma lágrima pequena, bem diferente do sorriso que gostaria de ter estampado no rosto quando amanheceu, ela é tímida mas conserva em si toda a dor que Sérgio pode sentir, a lágrima desce lenta rosto abaixo, deixando no seu rastro uma ferida aberta, trazendo a lembrança triste de que um dia uma borboleta quase entrou na casa, mas preferiu viver ao ar livre, solta no mundo, a lágrima desce lenta tentando se desprender do corpo de seu dono, ela parece desejar o suicídio ao se espatifar no chão e evaporar com o calor ameno da manhã, espantosamente consciente de que seu fim dará também fim à dor, Janaína não vai gostar nada de saber dessa história de falta do que fazer e choro comedido, não vai gostar mesmo, é provável que ridicularize, como ela costuma fazer, esse sentimentalismo todo, dizendo que um homem deve ser forte, que a única coisa com que concorda com seu pai é sobre o ditado que diz homem não chora, então Sérgio não é homem, ou então homem chora sim senhor, Janaína não tem direito nenhum de pensar assim dele, ela, aliás, nem existe, é apenas uma ameaça psicológica que Sérgio criou para si mesmo, as pessoas não são elas mesmas, mas aquilo que o outro pensa delas, talvez se Sérgio procurasse ver Janaína como uma prostituta, subserviente enquanto durar o dinheiro, ou como uma freira, subserviente enquanto durar a fé, ou a hipocrisia, o que dá na mesma, e Sérgio, afinal, quem é?, ele é só mais um homem que não devia mas chora, que ainda está acocorado num canto da casa temeroso das batidas na porta de há pouco e do telefone que já nem toca mias, Sérgio pensa que se olhar a paisagem talvez revigore as forças, ele já leu isso em algum lugar, tem uma mente frágil e é capaz de acreditar piamente em qualquer mentira bem contada, a vida de Sérgio não é nenhuma obra-prima, não, ele nunca foi o rei do baile, não comeu a mais gostosa da turma, nunca foi ele quem apresentou a maconha nas rodinhas de viciados, também não era ele quem fazia as melhores indicações de filmes, nunca lhe foi dado a honra estúpida de ser ouvido por uma platéia, nunca foi o primeiro homem de nenhuma mulher, aliás, nunca teve em sua cama uma mulher que o amasse, talvez por isso vá inventar uma história qualquer sobre Ana, a mulher de sua vida, a flor de lótus, os amigos, por sinal, igualmente invenções, foram todos embora antes que a festa acabasse, deixando para trás toda a sujeira que se desprendeu de seus corpos, e continua tudo ali, na casa de Sérgio, tudo do jeito que eles deixaram, a mente humana é um poço vazio preenchido esporadicamente de falsas esperanças, Sérgio, sabendo disso tudo, sente ainda mais dor, então ele tenta se lembrar da coisa mais linda que já viveu e se confortar com isso, o passado é uma massa como aquelas com as quais as crianças brincam, recebendo a forma desejada, moldando-se e deformando a verdade em nome de um ego ferido ou excitado demais, e afinal, o tempo é relativo, Sérgio pensa que seria engraçado se Einstein tivesse acrescentado na sua teoria; até mesmo a teoria da relatividade é relativa; então, finalmente, no riso ele encontra o esquecimento que queria, ele sente o conforto correr, como se fosse uma substância química, em suas veias, agora o que se pode ver na cara de Sérgio é um largo sorriso, como ele queria pela manhã, mais cedo, ele queria, na verdade, já acordar sorrindo, uma coisa muito insana de se pensar, tão insana que não se sustenta por muito tempo, sempre relativo, já que Sérgio sente escorrer fugaz essa nesga de felicidade, ele é triste, nem sempre o sorriso expressa alegria, pode significar desespero, encobrir a dor, a vergonha, o medo de que tudo permaneça assim, tudo passando frente aos olhos de Sérgio como se a vida não fosse mais que um filme, e a ele não restasse outro papel que não a de expectador, passivamente inserido na própria história, o curioso é que o medo em Sérgio não decorre de nada palpável, pertencente ao mundo concreto, ele não teme ser assaltado em toda esquina que vira, ou de ser esmagado contra um muro por um carro desgovernado qualquer, ele pouco se importa se a bolsa de Nova Iorque quebrar outra vez e levar junto para o abismo as cifras irrisórias de sua conta bancária, Sérgio tem medo é desses fantasmas, dessas presenças que o sentido humano é incapaz de perceber, são rumores que surgem de um lugar desconhecido, trazendo toda uma carga negativa que facilmente se abate sobre Sérgio, são socos e pontapés, chamadas telefônicas, sempre algo, desconhecido, tentando invadir, tentando se enfiar nas entranhas, e talvez ficar assim, como Sérgio está, todo encolhido em posição fetal, choramingando, a respiração emitindo um silvo vergonhoso, talvez assim ele não encontre saída e continue ali, preso, com medo desses fantasmas, mas no entanto esta luta está longe de acabar, ela acontece dentro, lá no fundo de algum fundo de Sérgio, bem no fundo, de onde ele agora precisa sair, escalar as paredes do abismo no qual se vê mergulhado, nem que isso lhe custe as unhas, os dedos em carne-viva na tentativa de emergir a algum sol, nem que isso lhe custe mais um trauma, mas ele precisa sair daquele buraco fundo, e pensar em algo é sempre um subterfúgio, rascunhar a manhã seguinte nos sonhos, imaginar-se sentado a uma mesa farta, frutas tropicais, semi-tropicais, sub-tropicais, sorvete no café da manhã, carne, muita carne, delícias mil, e, claro, pão e vinho, Sérgio acompanhado de nada mais nada menos que Ana, que acabou de se levantar da cama e caminha com um frescor matinal de comercial de margarina até a mesa, seus cabelos resistiram intactos à noite de sono, não se pode nem mesmo imaginar o hálito desagradável que exalam todas as bocas recém acordadas, Ana é quase um anjo dentro daquele seu hobby branco, muitíssimo elegante, puro cetim, quase um vestido longo para as manhãs especiais, os passos não emitem qualquer som, ela parece flutuar pelo caminho, desse modo Sérgio tenta mais uma vez agarrar o conforto de que tanto precisava, é melancólico ver um homem se afundar assim nas suas próprias ilusões, está cego para tudo que há a sua volta, para ele, o tudo que há está lá dentro, onde os fantasmas não entram, onde tudo é uma tênue projeção, uma delicada utopia, que se desfaz bruscamente com as batidas na porta, o telefone toca mais uma vez e Sérgio desperta de seu sonho num grito agudo, agora os socos viraram murros, os pontapés, chutes nervosos, o telefone toca insistente e Sérgio parece experimentar uma espécie de ataque nervoso, seu corpo inteiro se retesa, brilha de um suor frio, mas algo parece que está acontecendo, algo que vai tirá-lo de seu estado, como se um parto estivesse prestes a acontecer, o corpo de Sérgio vai aos poucos perdendo aquela postura de feto, os membros pedem sua rigidez inicial, a ocasião também pode ser comparada a uma borboleta que se liberta do casulo que ela mesma construiu para si, Sérgio é mais uma vez homo erectus, está totalmente de pé, se encaminha até a porta, as batidas continuam, só o telefone parece ter cansado e se calou, as mãos de Sérgio giram as chaves o número de voltas necessárias para que aquela fortaleza se abra ao mundo, parada, diante dele, mais um fantasma, Eva, que entra sem pronunciar uma palavra, se encaminha até o quarto, abre o armário, retira uma grande mala e começa a despejar peças de roupa, primeiro as íntimas, dentro, Sérgio está recostado no umbral, observando aquela mulher apagar daquele recinto todas as suas marcas, uma a uma, Eva, atormentada com a situação, não consegue conter suas lágrimas, nem suas palavras, chama Sérgio de filha da puta, roga duas ou três pragas, interrompe o trabalho para secar o rosto e retoma sua labuta, Sérgio é preenchido de um sentimento egoísta estranho, ele se sente bem ao ver Eva chorando, soluçando, ela também lamenta sua vida, ela também lamenta ter conhecido Sérgio, ela disse, todos tentam se esconder ou se livrar de seus fantasmas, não é apenas Sérgio que precisa escalar, nem que isso custe as unhas dos dedos, um abismo, e agora Eva já não está mais no quarto, ela está na sala, diante da estante de lembranças afetivas, esse é um outro momento delicado, olhar aquele passado entalhado em sorrisos, aquelas fotos enfileiradas em ordem cronológica, que estúpida essa esperança de tentar parar o tempo, aqueles sorrisos que agora só trazem dor, jamais eles acontecerão de novo, foram aprisionados em papel especial, como que condenados a uma maldição, a falsa promessa de eternizar o momento, de estabilizar a felicidade como se fosse uma fórmula manipulada em laboratório, os sorrisos alvos escurecem, há uma cárie especial para os sorrisos das fotografias, quanto mais Eva olha para aquelas poses, mais sente arrependimento por tudo, nem mesmo consegue se lembrar do porque sorrira tanto assim um dia, o que mais dói é ver que no fundo, o sorriso de Fabiana e de Che, seus filhos, suas crias, a razão de seios grandes e flácidos, dói ver que as crianças aparentemente alegres escondem toda tristeza do mundo, Eva se desespera com essa infelicidade toda que está sentindo, é por isso que eles estão ali, um diante do outro, o riso e o pranto, ao mesmo tempo, na mesma Eva, Sérgio parece captar toda essa emoção, seu espírito egoísta se acentua, tem um prazer diabólico em ver Eva naquelas condições, ele sabe que ela nunca o amou, ela sabe que ele sabe disso, Sérgio se sente como a serpente que seduziu e destruiu a mulher e o paraíso, Eva está sendo expulsa pela segunda vez na sua vida do jardim do éden, a casa e tudo mais pertencerá somente a Sérgio, ele vai prepará-la para a chegada de Ana, uma bonita flor de lótus sobre a mesa de centro da sala, a esta altura Eva já está na rua dando partida em seu carro, ligando o limpador de pára-brisas achando que a lágrima é chuva, Sérgio nem mesmo percebe que está sozinho mais uma vez, está afundado numa alucinação, pensa na hora em que Ana vai cruzar aquela porta e, sem desviar um só átimo de segundo o olhar, repetir com sua voz lânguida o alô de mais cedo.

terça-feira, abril 01, 2008

Sobre o último comentário

Estou aqui, numa dessas lan houses, saído da leitura do último comentário. Responder ao que foi exposto, nesse exato instante, pode representar um risco, uma vez que a carga passional pode se acentuar demais nas palavras. No entanto, pouco me importam os riscos, afinal de contas, a minha arrogância (adorei, porque nunca me chamaram de arrogante, já me xingaram de filha da puta até, mas arrogante, nunca... achei bastante solene e formal) não deve permitir a mim um recuo sequer. Não sei dar respostas precisas sobre o que Sérgio vai parecer a cada leitor. Nem tampouco tenho em mim tal curiosidade, nao sofro de egocentrismo a ponto de querer canalizar todas as impressões de cada um dos leitores. Considero legítimo dizer que o personagem é assim ou assado, ou cozido, sei lá. A antítese bobo alegre é intrigante, já que desse estado de espírito (vamos combinar) todos nós fazemos uso numa ou noutra ocasião. Sérgio não perdeu disciplina alguma, ninguém pode se dar a esse duxo, meus caros e inocentes leitores, até mesmo a indisciplina é uma maneira de estar disciplinado. Não há mais espaços, no mundo de hoje, para romantismos, aquele que elege o outro um vagabundo, o faz do alto de sua hipocrisia, porque no seu íntimo, quando recosta a cabeça sobre o travesseiro, ele sabe lá no seu íntimo que nada, ou muito pouco, para ser menos radical, o diferencia do mesmo vagabundo que qualificou. Quanto a escrever mal ou bem, eu prefiro ficar no intermédio, não sou um bom ou um mal escritor, aliás, nem sou escritor, sou penas um cara que escreve (e assina embaixo). Não quero que pensem de mim que sou um bom escritor, essa glória estúpida não me diz nada. Há quem diga que Paulo Coelho e os tratados sociológicos de FHC são ótimos, mas eu prefio Kundera, Pessoa, Dostoievski (será que Raskolnikov era também um vagabundo?), tem quem prefira ciência política, ou a pesquisa da célula tronco, eu, Rubem Fonseca, Caio, Fante e por aí vai. Eu já me libertei da minha própria escravidão, já cortei de vez o cordão umbilical, mas mesmo assim continuo preso, não tenho problema em aceitar isso, talvez eu seja mesmo um péssimo escritor, como quer o crítico anônimo, talvez me aconteça de ser iluminado pela sagrada inspiração, talvez me coloquem em livros, jornais e revistas e tudo que eu disser será usado depois contra mim no tribunal, de tudo que foi dito, só posso aceitar quando dizem que me contradigo, que ora digo uma coisa ora digo outra coisa, nisso tenho de concordar, porque o homem, metonimicamente falando, é a expressão máxima da contradição e que contamina tudo que lhe diz respeito, inclusive os seus textos (faço-me claro?). Além disso, me felicita comunicar que achar mais um sérgio foi realmente um ganho inesperado, já posso até imaginar, o capítulo que sérgio não vai dormir, vai, às três da manhã, sob a máscara do anônimo, tentar aterrorizar, em vão, a vida de um jovem que apenas deseja dividir com os outros a sua ficção...
até breve