terça-feira, maio 20, 2008

Bem, há muito tempo não atualizo este blog, por essa razão, vou disponibilizar a quem tiver interesse na leitura dois textos: o primeiro é do segundo livro (O autor sua dor); já o segundo é o quinto conto do novo livro que está em processo ainda. Embora apresentem estratégias narrativas distintas, guardam certa relação na força dramática de seus enredos. Espero que gostem!

Nem lágrimas escorrerão de seus olhos

Desceu a Pacheco Junior e virou à esquerda na Lenor, rua que achava grande e muito sinuosa embora tivesse apenas uma curva. Mas nisso Ele só acreditava durante a volta. Na ida seus pés meio que flutuavam sobre o chão de pedras quadradas. Tinha um estado de espírito que muitos, porém não todos, chamariam de bom. Ganhou a Francisco Portela, aquela avenida de luas amarelas pregadas nos postes, margeada por muros rabiscados de nomes muitas vezes incompreensíveis. Seu rumo era desconhecido, não inesperado. Algo difícil de explicar. No ônibus via flashes multicoloridos tão velozes quanto efêmeros. Avistou de longe, já descido da condução, o bar e uns pontinhos dançantes que julgou serem pessoas. Sacou do bolso da camisa um cigarro. Acendeu. Deu uma longa tragada, como se quisesse tomar um fôlego. Bufou um pouco e partiu deixando um leve rastro. Uma luz vermelha que se projetava de cima duma estrutura de ferro era a senha, podia atravessar a avenida, que àquela altura já mudara de nome. Os pontinhos, antes longínquos, iam tomando forma ao tempo dos seus passos. Levantou a mão algumas vezes, acenou com a cabeça noutras, mas foram seus olhos os que fizeram o contato mais interessante. Disso cuidaria depois. Uma vontade devia ser saciada antes de qualquer outra coisa. Pediu uma cerveja e deixou-se beber pelo líquido alcoólico envolvente. Um barulho polifônico preenchia o ambiente, vozes, muitas vozes se cruzando, dando crias. Sentiu uma ardência nas costas, pela forma grosseira que as pessoas daquele lugar tinham em se cumprimentar. J. estava parado atrás Dele, com um sorriso bonachão nada condizente com a bofetada. J. começou a dizer, você demorou muito, Ele fez silêncio. O que J. disse depois não se sabe, porque os decibéis dos alto-falantes eram imperiosos, imperativos, imperiais, plagiados de Joyce. Isso, também, pouco importava naquele instante. A terceira cerveja Dele se fora, junto de mais cinco cigarros e alguns minutos de sua breve vida. Mas sobre isso, claro, sua consciência não o permitiu refletir. Não naquela hora. Seus olhos eram a única – a única, não a mais segura – forma de captação. E justo eles, que já o traíram em tantas ocasiões. A célula fotográfica da retina apontara para muitas poses, mas revelara poucas, das quais aquela mulher fora a mais preciosa. Gostosa, o termo mais preciso e precioso mais uma vez, todas as vezes, sempre. Quem sabe? Olhos, forma de captação e de comunicação, enigma averbal. Fonte de dúvidas e falsas certezas. Ele já não podia lutar contra isso e se deixava penetrar pela imagem daquela mulher. O inverso da lógica biológica. Penetrado e ocupado por dentro, a mulher, enorme, mas que mesmo assim penetrou pelo pequeno orifício ocular. Onde estaria J.? Em algum lugar, como todo mundo. O que importava é que Ele estava ali, ela idem, os dois juntos, eclipse, um na frente do outro, a luz e a sombra, e ela ainda dentro dele. Só restaram os dois, mais ninguém. Pra quê mais alguém? Que se danassem. Eram os dois, o necessário, o suficiente, tudo. Ele ouvia a voz dela, mais alto que qualquer outro som, eu quero foder com você, sim, Ele podia ouvir. A resposta? Uma ação, a aproximação, o contato, a rejeição. Então Ele se recolheu à enésima cerveja e ao enésimo cigarro, mais morto que antes. Ilusão? O barulho polifônico retorna, as pessoas, J., tudo incomoda. Ele se recorda de ir embora, sentar num banco, numa escada, pensar, paga, sai, olha a mulher uma penúltima vez. Se distancia do bar e as pessoas vão retomando a sua forma de pontinhos. Ele senta, no meio-fio, ainda olha a vista longínqua. Os pontinhos pululam, crescem, brotam. A mente insana ocupa o tempo, os braços, as pernas, os instintos. Ele fuma mais cigarro. Por que desceu a Pacheco Junior?


Não desceu a Pacheco Junior. Seu endereço era já outro. Subiu a íngrime Adino Xavier. Seguiu à esquerda na Rua da Caminhada. Alguns passos depois, portanto nem uma caminhada inteira, e mais uma vez à esquerda, estava na Maria Rita. Em alguma rua daquele logradouro seria a festa. Mas não lhe saia da cabeça a sua excomunhão da igreja católica. Não de acordo com doutrinas, imposições hipócritas, decidiu semear a discórdia no seio da religião. E tão nervoso foi seu intuito que se viu diante da forca, porém feliz, uma vez que ia ser des-batizado, livre outra vez, criatura, ou criador da própria consciência. Nas celebrações se exaltava, pensava nisso enquanto ia a caminho da festa na Maria Rita. Vociferava suas palavras contra o peito frágil dos fiéis. Estava possuído, muitos diziam, dominado, ou então, como você mesmo preferia acreditar, totalmente solto, liberto, a luz a sua frente, e você todo sorrisos. Você não sofreu, isso não, riu, riu loucamente da sua expulsão, do vazio que ficou depois disso, dessa paz que sempre você almejou. Ia para a festa assim, desimpedido, acima de tudo, vivo, encimado por uma luz natural, talvez assim você não o quisesse, mas ia. Traiu a igreja para ser fiel a si mesmo, e a mais ninguém. Você negou a si mesmo a volúpia da religião, o orgasmo santo e sagrado, simbolicamente sangrado. Negou a carne forma de trigo, que muitas vezes, contrariando orientações, você mastigou, cravou os dentes, não a deixou se dissolver entre o dorso da língua e o céu da boca, não, não mesmo, você sempre mastigava o corpo, canibalizava a eucaristia. Talvez eles até tivessem razão, talvez você estivesse de fato possuído, endemoniado, uma fera indomável tentando transpor as rijas barras de ferro da cela que lhe impunham, acorrentado no pênis, na boca, nas zonas todas do seu corpo, acorrentado no desejo, no tesão, a cabeça, a mente, tudo acorrentado. E dos meus olhos brotava a chama do rancor, chama molhada, água fervente, salgada, acre, um latido feroz saído dos olhos meus, perscrutando as almas vazias e quase transparentes de seus agressores, olhos viscerais, olhos de lâmina cortante. Passei a mão na chave em direção ao andar de cima. Já iam dentro das calças o cigarro e o isqueiro. Subi os degraus da escada de dois em dois e me perdi no anonimato.


“O homem é como os rinocerontes, isso, os rinocerontes, ele ataca primeiro e pensa depois. Ele primeiro sacia essa necessidade instintiva e depois pensa, o que já não adianta de nada. É o fato que constrói teoria, disso não se tem dúvidas, a teoria que é um pensamento, também vem depois. Agora é fácil pensar, explicar, procurar razões e justificativas, mas na hora, se ataca, e tão somente.”

“Maquia direitinho, ela tem que ficar linda, deslumbrante, uma princesa. Olha aqui, aqui em baixo dos olhos, põe mais pó-de-ruge aqui, vai. Assim, assim mesmo que tá linda, lindíssima. Não esquece o batom dela, viu? Sem batom ela é a mesma coisa que comida sem tempero. Ai, ai, ai. Tá ficando linda, eles vão te adorar, querida.”

“Na hora, a vontade te controla como se fosse ela a única e imperiosa senhora. Essa irmã gêmea da loucura, esse passo anterior ao insensato, essa forma dúbia do egoísmo, não mais que isso. Ou simplesmente isso.”

“E essa sombra aqui, você pirou? Mais escuro, por favor! Quero que os olhos dela tragam a escuridão, quero que os rapazes se percam na neblina do olhar dela, isso, isso, capricha. Parece uma modelo de passarela, não parece?”

“O desejo maior do homem é o dinheiro, tudo para o homem se resume a dinheiro. Dois pecados, um é o de resumir tudo, dois é o de acabar resumindo a si mesmo. E no entanto poucos se espantam com essa banal verdade. Falar é fácil, viver que é foda.”
“Destrava essa cara, querida! Assim com essa careta não vai adiantar muito a maquiagem mesmo. Dá um sorriso, vai, dá um sorriso que eu quero ver esses dentes. Mas se quiser pode ficar assim com cara de nervosinha, eles vão adorar você de qualquer jeito.”

“Outro desejo do bicho homem é organizar o conhecimento, uma triste ilusão, porque o espírito é sempre prático e, acima de tudo, imediato. Sede de compreensão é uma doce utopia que dá sentido à vida humana. A única pergunta que se pode fazer é: o que fazer com o incompreensível?”

“Cadê aquele sutiã com enchimento que a gente comprou? Não tô achando. Não tá aqui nessa sacola. Cadê a porra do sutiã? Sem peito grande não tem graça, né? A moçada gosta mesmo é de peito bem grande. A galera gosta de carne ou de imagem. Você tá ficando uma boneca!”

“No início era o verbo, e o verbo era tudo, e o verbo era deus, e dele tudo nasceu, e dele tudo há de nascer. O verbo. Mais um desejo. É melhor ler sobre aquilo em que se acredita. Desse jeito é menos vergonhoso.”

“Uma belezura que tá ficando, uma belezura! Coisa mais fofa, gente! Linda demais! Tá quase chegando a hora, tá? Você vai ver que espetáculo que vai ser. Ficou ótimo esse sutiã nela. Assim que eu queria, bastante peito!”

“Sempre se explica a própria dor pela dor alheia. Eis o critério.”

“Ta pronta! Aiiiiii! Nossa, como ficou linda! Vamos apresentá-la!”

“Mas no fim de tudo, se é que é possível haver fim, fica a agradável lembrança do prazer que tive”


Ela não podia me renegar. Qual o porquê daquilo? Eu não estava errado, de maneira alguma. O que mais eu podia representar para ela naquele instante? A julgar pelo olhar... eu ouvi bem ela me dizendo aquilo. Era ela quem dizia, e dizia a mim, com seus olhos, não dizia? Ora, claro que sim. Eu atendi. O que mais podia fazer se não atender aquele chamado? Eram suplicantes os acordes que se desprendiam daquelas pupilas absurdamente dilatadas. Era o Prazer em forma de mulher, convidativa, serpente da sedução, feminifelina. Agarrei-a pelos pulsos com força, numa demonstração da minha condescendência. No que ela titubeou, imprimi mais força aos meus dedos e mais afirmação nas minhas expressões. Um ui silvado ecoou de dentro dela, quase um uivo de gozo. Meus pouquíssimos pelos do corpo se assanharam, eretos, tremulantes, sensíveis. Decidi que ela me queria no controle. Éramos animais e assim devíamos nos portar, feito animais, os animais próprios na loucura e insana tendência do instinto. Panos rasgados, pele arranhada, mordidas, dentadas, músculos tensos, suor e cansaço, dor e entrega, sussurros gemidos gritos, eu no controle.


Eu queria, sóbrio, tranqüilo, tocar o rosto dela, macio, suave, eu queria enroscar feito cobra naquele corpo, sem apertar, na dose exata, ouvir suspiros, pequenos gemidos, tremor de pernas, eu queria que tivesse sido assim, você nem vai acreditar, mas eu queria que tivesse sido assim, ser beijado com um beijo úmido, tocar a nuca suada com dedo não hesitante, se eu pudesse voltar, te juro, eu voltaria, talvez nem sairia de casa, onde eu morava mesmo?, lembro pouco, foi tudo tão rápido, ela estava lá deitada, meio de lado, um pedaço da língua pra fora, os olhos, ai, aqueles olhos, arregalados, e já não olhavam mais pra mim, não olhavam nada, eram olhos que não eram olhos, eu queria mesmo era ter viajado com ela, isso eu senti logo naquela noite, ela era loira, falsa, é verdade, mas mesmo assim loira, um metro e oitenta talvez, você já se apaixonou por alguém?, ah, isso não é importante, você não entende mesmo, e eu entendi tudo errado, sempre entendo tudo errado, por isso fiz o que fiz, eu nunca quis forçar ninguém a nada, todas as noites eu sonho com isso, ela gritava, mas eu não ouvia, sei que ela gritava mesmo sem poder ouvir, se eu pudesse, meu deus, se eu pudesse... agora eu estou aqui, querendo o impossível, voltar no tempo, mas o engraçado é que eu não consigo chorar, devo ser doente, você não acha?, desde que tudo aconteceu, ninguém veio me ver, minha mãe me mandou uma carta me dizendo que isso é castigo, eu já nem sei mais, o pessoal vai me matar, não vai?, por isso essa roupa ridícula, não é mesmo?, eu não ligo, não ligo mesmo, nem mesmo consigo chorar, acho que confundi as coisas, mas não sou monstro nenhum como você me disse... pelo menos eu não vou mais ter que sonhar com isso toda noite.

Mas já é tarde

“primeiro tentou poema
tirar imagem
dela parada serena”

A manhã é quase uma extensão da noite. No céu, cinza-escuro, uma grossa camada de nuvens esconde o sol. Pode-se até pensar, dependendo de quem e de seu estado de espírito, que o sol nem mesmo existe. O cenário lembra aqueles filmes que tentam revelar tão somente na imagem uma emoção qualquer do personagem. Como se o aspecto do cenário pudesse resumir o aspecto do homem. Dessa vez o dia não começa com nenhuma onomatopéia emitida por uma parafernália made in China que funciona a pilhas. Sérgio desperta é com o som da chuva se precipitando sobre as telhas francesas, mas ainda conserva os olhos fechados. Ele gosta desse chiado, dessa pequena sinfonia que se produz toda vez que chove, muito embora se irrite com as intermináveis goteiras que surgem em tal ocasião. Lá fora está tudo úmido. A posição dos ponteiros no relógio indica que ainda é bem cedo. A casa alugada onde Sérgio mora é velha, uns setenta anos ou mais, é parte de uma antiga vila operária, de uma época em que havia prosperidade, como costuma dizer Dona Bia, a dona da casa. O passado de todos, estranhamente, é sempre glorioso. Pelo postigo, improvisado de papelão, uma pequena fenda permiti que uma fina e tímida luz, por conta da cor daquele céu, atinja em cheio as pálpebras ainda cerradas de Sérgio. Ele prontamente contorce o rosto e logo depois todo o corpo, está se libertando de vez da sua pequena morte. É a primeira vez em muitos dias que Sérgio acorda bem e isso lhe provoca, de início, uma surpresa, talvez hoje seja um dia especial. E ele vai aproveitar essa atmosfera para colocar as coisas em ordem, muito embora aprecie bastante a desordem. Precisa terminar um poema do qual não consegue sair faz tempo. Hoje, se deus quiser, ainda que seja ateu, ele vai conseguir terminar o texto, alguma coisa vai ser encerrada hoje, é essa a sensação que se apossa de Sérgio, a de que existe um fim e de que ele vai acontecer hoje. Mesmo com esse céu, completamente cinza-escuro. Mas não sem uma xícara de café antes. Na verdade um copo. Sérgio acha besteira essa solenidade de ter de usar xícaras para tomar café, bem como se sentar à mesa, dar bom dia, desejar boa sorte e toda polidez social do gênero. Ele deseja apenas saciar sua sede do conteúdo, portanto não lhe interessa o continente. Pelo quarto algumas peças de roupas estão amarrotadamente confortáveis no chão, Sérgio gosta dessa aparente desordem, é como se aquilo pudesse ser uma pequena alegoria de sua discordância com o mundo, com a pontualidade que as instituições tentam impor aos indivíduos. Ele não pode começar a pensar nisso tudo, senão um imenso buraco se abrirá em suas entranhas, então ele voltará a praguejar, como costuma fazer, a sua própria fortuna, como se fosse autoflagelo, ou algo do tipo. Nesta manhã Sérgio se sente bem, ele ainda sabe como conservar estados emotivos, é preciso conhece-los, vivenciá-los apenas uma vez, depois da experiência fica simples camuflar. Será isso? Será camuflagem, simulação pura essa tranqüilidade que se veste suave em Sérgio, como se fosse o sereno, que umedece aos poucos os cravos do jardim? É curioso que da cabeça de Sérgio não tenham saltado as suas angústias, elas estão todas lá, no seu lugar de direito e posse, mas não fazem tanto barulho hoje, certamente um dia especial, Sérgio tem novamente essa sensação. Pensamento e ato podem tomar rumos distintos em diversas ocasiões, a mente é absorvida por suas abstrações enquanto as mãos e pés dançam por um palco conhecido, executam movimentos programados, a ação em certas circunstâncias parece alheia ao pensamento. Por essa razão, essa estranheza humana, o café já está pronto, servido num copo desses que são usados em bar, tudo mecanicamente, ele já desce quente e doce pela garganta de Sérgio, deixa seu rastro como um pequeno incêndio, um calor leve mas suficiente para provocar uma desagradável sensação de ter queimado todas as cordas vocais, Sérgio faz uma careta iludido de que isso lhe traga algum alívio. Na verdade ele foi displicente ao dar uma golada tão grande em uma bebida fumegante como o café recém saído do fogão. Para completar a pequena tragédia do início do dia, o copo, largado com excessiva força sobre a pia da cozinha, em vista da queda, sofre uma fissura suficiente para fazer trincar o vidro inteiro. Alguns cacos se arremessam ao chão, parecem cheios de uma inconsciente intenção de ferir alguém. Enquanto ainda faz caretas inúteis, Sérgio, distraído do resto de seu corpo, absorvido somente pela queimadura de língua e garganta, pisa em um dos cacos inconscientemente mal intencionados. Agora são duas dores físicas: calor excessivo na boca e sangue quente jorrando da planta dos pés. Lá fora, a mesma chuva que acordou Sérgio continua a cair, então ele, um pouco manco, por causa do corte, abre as duas folhas da janela, se debruça, depois gira o corpo em cento e oitenta graus, fecha os olhos para não se importunar com as gotas, o céu, antes cinza-escuro, fica totalmente negro, ele arreganha a boca e deixa a água da chuva preenche-la, na verdade água da calha, cheia de sedimentos, folhagem, lama e lodo, até mesmo lembranças, uma temperatura é substituída por outra, a boca, a garganta (porque a chuva molhou até mesmo o peito que incendiava ainda com o café), essa parte estranha do corpo já não sente incômodo algum, com exceção dos detritos e lembranças que agora quase sufocam Sérgio, ainda estendido sobre o para-peito da janela. Ele se livra dessa posição e também de todo conteúdo novo, agora velho, e retorna para a atmosfera da casa. Numa cortina velha e surrada Sérgio faz sua higiene pessoal, depois de secar rosto e mãos, observa a sujeira de seu corpo transportada para a cortina, ele gosta dessa desordem, da cortina encardida, das roupas amarrotadas que descansam no chão, sente certo prazer na maneira como vai tecendo o enredo de sua própria vida, uma desordem total, o único pecado de Sérgio é ignorar que até mesmo a indisciplina é uma forma de disciplina. Talvez ele não ignore totalmente, talvez apenas simule essa ignorância, do contrário, todo aquele mundo, toda aquela teia em que estava envolvido, tudo se desmoronaria feito uma placa de gelo derretendo ao sol. Penetrar a cabeça de Sérgio e descobrir se tais fundamentos são válidos é apenas um ilusão, embora a hipótese seja sempre válida. Mas para Sérgio, toda essa filosofia de garagem não interessa neste momento, seu pé sangra quente, não tanto quanto o café que lhe queimara a língua, e na verdade o calor ameno do sangue jorrando nem incomoda, a dor é a madrasta, é a chaga, a ferida aberta no corpo, na planta dos pés. Só agora Sérgio nota que por toda casa, vestígios de seu sangue decoram o assoalho, alguma mudas de roupa, alguns papéis, seis ou sete poemas, um conto não terminado, o primeiro romance, fotografias, um filtro de cigarro, uma calcinha órfã, Fernando Pessoa, quase tudo na casa está tingido de vermelho. Diante dessa circunstância, dentro de Sérgio se abre um vão, ele acaba de estabelecer um pacto de sangue com sua casa, com tudo que há nela, com seus textos, com seu passado em imagens policromáticas, com seu autor preferido, com sua segunda pele, a dor não importa mais, é um elemento acessório, há mais que sangrar, fazer do sangue a urina de um cachorro que deseja demarcar seu território, então Sérgio toma em suas mãos o texto que deseja terminar hoje, é um poema, ele acha, começa a ler em voz alta (ela é branca / preta / ela é todas as cores / do céu / do mar / do sonho / ela é doce / é acre / ela é todos os gostos / do tempo / do vento / de agosto / ela sabe francês / mandarim / javanês / ela é todas as línguas / toda língua / língua / ela é a canção que me toca / ela é a manhã nublada de sábado na cama / é quem diz que me ama / ela é um verso escondido na dor de um poeta / a caligrafia enferma / ela é o perfume que exala das flores / ela é afrodite / deusa dos amores / ela é o abraço apertado da despedida / ela é o restinho que me sobra de vida / ela é minha noite em claro lendo pessoa / ela é o verão que começa chuvoso / ela é a nona / é as doze badaladas da meia-noite / ela é a lágrima que escorre do meu olho / a tinta fresca borrada na tela / a voz rouca de um cantor famoso / o segredo que a criança não conta / ela é o acidente de percurso do meu destino rasurado / é a folha em branco / meu casaco manchado / ela é o sabor de setembro / as águas de março / calor de janeiro / o último cigarro do maço / ela é o caminho perdido / meu abril despedaçado / a página virada de um livro / a palavra sem significado / ela é a angústia cortante dos dias / é meu eterno feriado / ela é o movimento delicado da relva / o ato improvisado de um teatro / o palco / o pano abaixado / cenário revelado / é o desvario dos loucos e alucinados / minha droga / minha heroína / ela é corpo e cansaço). O poema está terminado e o dia mal começou, especial mesmo, agora não falta mais uma palavra, a mancha de sangue é o ponto final do poema, Sérgio constata que todo poema deveria ser encerrado com a mácula do poeta, como se sugerisse nas palavras uma hemorragia da alma de seu autor. Ela é Fabiana, pensa Sérgio, que sente ter retirado de suas costas o peso imenso de terminar aquele texto, algum dia será lido numa ocasião destinada a leitura de versos, vão maldizer sua obra, alfinetar com comentários depreciativos, sempre fazem isso, zombam do outro para que aos olhos de todos, pareçam melhores, sejam eles os amados e idolatrados, o assunto das rodinhas. Sérgio não discorda de seus críticos, ela sabe que escreve mal, ele é um leitor voraz, sabe a diferença entre uma palavra ordinária e uma imagem carregada de sentidos, ele não quer ser fulano ou beltrano, nada disso atrai a atenção de Sérgio, sua única diversão é se fazer daquele rapaz, que se encaminha até a casa de sua namoradinha, e, no meio do trajeto, esbarra numa flor simples, nada demais, a retira de seu canteiro, e retoma o caminho, ao chegar ao seu destino, ele é recebido pela mocinha, que aceita, estupefata, cheia de amor e felicidade, aquela simples flor, que nunca se pretendeu uma orquídea ou coisa do tipo, Sérgio quer apenas que seu texto lhe mostre um caminho que leve a esse amor e a essa felicidade, a simples flor é a palavra ordinária de Sérgio, que nunca se pretendeu Shakespeare ou coisa do tipo. Aquele poema é só da Fabiana e somente sua opinião importa, somente o arfar de seu peito quando decifra cada significado íntimo dos versos, cada piada sem graça transformada num registro pessoal da poesia, somente os olhos brilhantes e ofuscados pela verdade daquele texto que só ela será capaz de desvendar, e guardará para si, em segredo absoluto, e vai sonhar nas noites de sono tranqüilo, e vai pensar em claro nas noites mal dormidas, é Fabiana quem importa. Essa tranqüilidade que se apossa e Sérgio inunda a casa de paz, tudo se encaminha perfeitamente bem, é realmente um dia especial, que vai ficar arquivado sob todos os cuidados na lembrança de Sérgio, o texto, a desordem, a chuva lá fora, o sorriso imaginário de Fabiana. Já o café pelando, o copo quebrado, o corte na planta dos pés, para tudo isso Sérgio vai usar uma borracha especial, vai apagar, editar a manhã, para que ela se aproxime de uma perfeição parnasiana até. Ainda há o dia inteiro pela frente e já tanta coisa agradável aconteceu. Sérgio vai aproveitar o clima para resolver tudo com o Che quando ele aparecer, dizer que não pretende mais levar a frente essa história, que ama a Fabiana e que não acha justo fazê-la sofrer tanto assim, ela não merece a sua infidelidade, vai terminar aquela aventura com Che em nome do amor de Fabiana. Na certa Che vai entender, ele é um espírito livre, seu corpo está cima de tudo, é um hedonista nato, vai aceitar não ter mais Sérgio na conta de seus relacionamentos sexuais, ele tem dormido pouco em casa, e afinal de contas, não foi Sérgio o seu melhor amante, Che morre mesmo é por Jorge, se tortura com seu ciúme doentio, é por causa de Jorge que Che enfia pó no corpo pelo nariz, se embriaga, é por Jorge que Che já tentou suicídio. Apesar de tudo isso Sérgio não tem tanta certeza quanto à aceitação de Che, não tem, precisa tentar assim mesmo, está decidido de que deve se dedicar inteiramente à Fabiana, antes que seja tarde demais. Quando Che voltar, Sérgio vai dizer tudo abertamente na cara dele, vão discutir quem fica com a casa, os assuntos burocráticos, enfim. Sérgio deseja ficar, a desordem, seu orgulho, é mais dele do que do Che, que quase não fica em casa, e agora até rastros do sangue de Sérgio mancham o assoalho. Ele vai preparar tudo, um dia vai receber Fabiana em casa, ajudando com as malas pesadas, despejando-as todas num canto qualquer, Sérgio vai encher Fabiana de beijos de saliva fria, de abraços de afeto quente, vai fazer tudo isso, dar abrigo e segurança àquela mulher, basta aguardar com paciência os minutos, as horas, os dias, se necessário; em resumo, basta aguardar. Então Sérgio se põe a pensar na sua história de vida, na tragédia que marcara sua existência, lembra do dia em que Lucas, seu pai, colocou a mulher e os dois filhos no olho da rua, sua mãe dirigia o carro quase afogada em lágrimas, Sérgio era pequeno e chorava apenas por ver Ana chorando, porque não compreendia bem a dor de sua mãe, amada mãe, ele era incapaz de saber exatamente, mas crescia dentro dele uma raiva aguda do pai, desconfiava muito da traição de seu pai e sentia por ele um ódio mortal. Eva, sua irmã, parecia uma estátua de bronze, pois nunca manifestou qualquer sentimento quanto ao episódio, o silêncio se expressava de maneira absurdamente voraz, engolia tudo a sua volta. Tão logo descobriu o poder que sua boceta tinha sobre os homens, sumiu no mundo, Sérgio nunca mais soube dela. Não demorou muito para que Ana fosse consumida pela depressão até ser internada em clínica psiquiátrica. Então Sérgio encontrou Che, ou melhor, Che encontrou Sérgio, um garoto solitário, vadio, necessitado de uma mão amiga, ou mais que amiga, como foi o caso. Mas isso tem de acabar, Sérgio quer Fabiana e Che vai fazer parte do passado, e Sérgio pode até usar aquela borracha especial se quiser. Não parecem ter sido muito bons os últimos pensamentos que perpassaram a mente de Sérgio. Ele decide então tratar sua ferida aberta, o corte na planta dos pés, já não há mais sangramento, ele chega a desconfiar, por um momento, que seu corpo parou de produzir sangue, a carne está tão viva, a fenda ainda está tão grande que é de se espantar que não sangre mais. Alguma coisa incompreensível para Sérgio está represando o sangue, impedindo-o de vazar por aquela ferida. Isso afinal, não pode provocar pânico em Sérgio, pelo contrário, não há mais necessidade de tratamento algum, a ferida se fechará por efeito espontâneo e natural, é só uma questão de esperar, esperar a cura, esperar Che, alguma coisa vai ser encerrada hoje, é essa a sensação que se apossa de Sérgio, romper o pacto, esperar Fabiana, ela é um verso escondido na dor de um poeta, refazer o laço. Sobre uma das almofadas que há pela casa, uma edição intocada do jornal de ontem descansa sossegada, até então, já que Sérgio decidi evadir-se numa leitura fácil, não está muito disposto para literatura tcheca ou qualquer coisa do tipo, já terminou o texto que queria, o dia transcorre razoavelmente bem e além disso não quer se deixar dominar pelo estado de dúvidas que se anunciava. Por isso vai ler o jornal. Ele se distrai, agora esparramado sobre um velho sofá, com as manchetes escritas em duplo sentido clicherizado e as piadas baratas que com freqüência tomam a maior parte da página. O estado enfrenta uma epidemia que põe a população em pânico, depois de exterminarem os mosquitos, vão precisar de mutirões de psicanalistas para atender aos afetados psicologicamente por essa onda de pânico. Isso, claro, não consta na chamada da matéria, é Sérgio, um pouco vaidoso, quem reflete sobre o problema. Num outro quadrante da página, uma mulher seminua, noutro, o destaque é uma reportagem sobre roubos de automóveis, neste país, rouba-se um a cada três minutos; matéria encomendada por seguradora ou por empresa de rastreamento de veículos. A pessoa lê, entra em pânico de novo, igual ao caso do mosquito, e assina uma apólice ou instala um gps no carro. Isso também é produto da reflexão de Sérgio que, mais vaidoso ainda, se sente acima da maioria das pessoas, por sua capacidade de não se deixar enganar, é isso que ele pensa. O fetiche contemporâneo se constrói sobre o medo. A preguiça do dia tem um certo efeito sobre Sérgio, que afundado ali naquele sofá, tenta encontrar nas palavras de um jornal qualquer o fundamento daquilo que ele julga ser seu dom, ele sim vê além da superfície, pelo menos é assim que pensa, os anos ao lado da literatura, as páginas e páginas de metáforas, de imagens, de contigüidades propositais, até mesmo sua própria ficção, seus poemas, pequenas bolhas de desabafo voando pelo ar até perder densidade e estourar. As mãos de Sérgio fazem um movimento desajeitado, abrindo assim o jornal em duas partes, o pensamento passeia rápido sobre a imagem de Fabiana e Sérgio esboça um pequeno e tímido sorriso. Vai ser hoje, com esse céu cinza-escuro, que confunde dia e noite, engraçado um dia assim tão especial acontecendo em baixo desse céu tão carregado. Os olhos de Sérgio deslizam sobre as palavras, sobre as reportagens, aquele que não tem preocupações na vida deve abrir um jornal, ali existem aos montes, do vigésimo segundo andar de um bairro de luxo alguém saltou para virar patê de cor avermelhada. Não mais dono de si, por um instante, Sérgio experimenta a sensação de despencar vinte e dois andares, o vento rápido demais, o coração rápido demais, tudo rápido demais, a morte tem pressa, o coração quase salta à boca de Sérgio e seus pulmões aceleram a respiração, ele sobrevive à sua experiência da sensação. Sérgio sempre vê além da superfície, ele interpreta aquele mal-estar, aquela pequena encenação da morte, como um sinal, um aviso. Só não sabe ainda de onde vem o sinal, nem o que ele quer dizer, mas está absolutamente convencido de que é um aviso. Ele, no entanto, não pretende se ocupar dessa questão e mostra que é dono de si sim senhor ao voltar sua atenção para o jornal do dia anterior. Na seção das notícias internacionais, Sérgio alivia seus nervos, está tudo acontecendo (se é que está acontecendo mesmo) longe demais, fica mais fácil ser alheio a tal distância, a China e seu comunismo, sem partilha, a Europa e seus castelos, sem reis ou rainhas, os Estados Unidos e seu consumismo, no sense, a África e suas crianças, sem infância, o Oriente Médio e seus homens-bomba, sem medo ou perspectiva. Sérgio gasta longos minutos fazendo pontes-aéreas pelas notícias internacionais, tudo corre bem outra vez, a tranqüilidade é enfim restaurada, o sossego da leitura frente a uma foto de monges sendo espancados soa, aos ouvidos de Sérgio, como uma antítese; essa veia literária que não o abandona, esse dom que ele acredita ter, capaz de enxergar além da superfície, a luta pela independência do Tibet, sob a lente dos jornais, é pura literatura, quase uma epopéia, Dalai Lama, o libertador do espírito e da carne; para Sérgio, o que ocorre do outro lado do mundo (na verdade até na casa do vizinho) não passa de ficção, ele entende como a vida é transformada em páginas que podem ou não ser lidas, cada pessoa codificada em letras e significados. Sérgio chega a pensar que poderia escrever crônicas em jornais, assim conseguiria sustentar Fabiana, comprar-lhe rosas quando voltasse da redação, uma boa garrafa de vinho, uma jóia cara, tudo enfim, mas nessa projeção utópica, Sérgio, que se considera acima dos demais ou aquele que enxerga além da superfície, não percebe que rosas, vinho e jóia são três representações simbólicas de um amor concebido nos estúdios do cinema hollywoodiano. Todos cometem falhas, todos titubeiam, inclusive Sérgio. Além disso, como Sérgio poderia se sentar, numa possível reunião de pauta, ao lado do repórter que ele tanto despreza? O autor, segundo o próprio Sérgio, da ficção cotidiana que aprisiona as pessoas. Até mesmo Sérgio está sujeito às contradições. Fora toda essa reflexão inútil, as páginas do jornal farfalham sob a ação das mãos de Sérgio. Tudo retoma seu caminho, os olhos de Sérgio passeiam vertiginosamente por uma página exclusiva sobre acidentes de trânsito, morre cada vez mais gente no trânsito. Muito estranhamente, Sérgio é invadido por imagens, como se sua mente fosse uma pequena, mas poderosa película, é uma cena que se desenrola meio que saída de algum projetor, ele ainda segura o jornal, seus olhos ainda se afundam nos textos, mas seu semblante revela um ar tenso, são as imagens que se projetam não se sabe de onde, às quais Sérgio assiste não sabe por que, nelas aparece um rapaz viril, jovem - um orgulho para sua raça, diria Woody Allen - no máximo vinte anos de vida, ele está num festa, cercado de muitas pessoas, todos sorriem muito, parecem felizes, absurdamente felizes, seus dentes ficam tanto tempo à mostra ao ponto de se ter a impressão de que já nasceram todos sorrindo, que aquela é a expressão permanente de seus rostos, não se pode compreender uma vírgula de seus assuntos, talvez o motivo de toda aquela felicidade; alguns dos convivas, dentre os quais o rapaz viril, parecem tão extasiados que nem mesmo se sustentam de pé, caem no chão como se tudo aquilo fosse uma brincadeira combinada antes por eles, nessa cena são todos muito belos, rapazes e moças, se pode sentir o frescor de suas intimidades, os poros exalando hormônios, a disposição e o instinto falando mais alto que o bom senso, tudo continua até muito tarde, a cena, as imagens, então a festa acaba, o rapaz viril parte em seu carro turbinado, no trajeto, corta as avenidas como se estivesse pilotando uma nave no espaço, realmente ele está feliz, seu carro faz um zigue-zague desinteressado que exprime essa felicidade, ele parece um trovão no exato momento em que avança um sinal vermelho e sem nem mesmo perceber atinge uma coisa sólida, que muda de estado físico, agora um pouco sólida, um pouco líquido, são pedaços de carne, são poças de sangue, lá na frente, o rapaz viril segue, feliz como antes. Sérgio enfim se desprende dessas imagens, mas continua com os olhos fixos no jornal com a sensação de que há uma proximidade enorme entre aquelas imagens e ele, uma intimidade perversa. Sérgio se levanta com um pouco de dificuldade do sofá, ele não acredita em jornais, é tudo ficção, mas ele está visivelmente abalado, estica os braços o mais alto que pode para se espreguiçar e percebe, ao olhar para o alto, que as telhas francesas estão completamente úmidas, parecem querer chorar. É o que de fato acontece, as goteiras se intensificam, porque lá fora, a chuva já se transformou em tempestade, que desaba impiedosamente. Uma estranha e vertiginosa sensação corre pelo corpo inteiro de Sérgio, que se deixa jogar mais uma vez sobre o sofá velho e adormecer profundamente. O sono lhe vem como uma imensa rocha sobre a cabeça. Dorme por muito tempo, até despertar. Com seus olhos estranhamente arregalados constata que não experimenta mais a mesma tranqüilidade da manhã. O corte ainda arde fininho na planta do pé, o jornal continua aberto, nem tudo nele é alheio à vida de Sérgio, não mesmo, não aquele rapaz viril, não aquela moça, Fabiana, atravessada ao meio, morta. Sérgio fica sem saber o que fazer, demora um pouco até se decidir, na verdade não há mais nada a ser decidido, consulta o relógio e percebe que já não é mais tão cedo assim, algum evento fez os ponteiros se lançarem numa corrida alucinada, está tarde. A maçaneta da porta finalmente tira Sérgio daquele estado de incerteza, ele observa ansioso pela pessoa que está por entrar, alguma ponta de esperança faz Sérgio pensar em Fabiana cruzando aquela porta, mesmo num caixão há sempre quem espere ver o corpo se levantando milagrosamente. Mas não, é o Che, encharcado pela chuva, sorrindo tímido. Sérgio continua parado, olhando Che se aproximar e estender os braços a ele, envolvê-lo cheio de pêsames, dizer que sente muito e que o funeral é hoje. Sérgio se desprende do corpo de Che, caminha para cama e se cobre com um lençol qualquer, ele não quer acreditar, vai dormir e ver se quando acordar será tudo diferente. Não funcionou antes, quem sabe funcione agora. Ele é poeta, talvez componha um verso que amenize a sua dor, mas já é tarde, lá fora e aqui dentro, já é tarde demais.