domingo, dezembro 30, 2007

Quase um filme, quase um conto, quase nada

este conto é parte de uma seleta de 18 contos, reunidos sob o título de O Autor e sua dor e outros contos; alguns outros contos já aqui publicados são parte do livro (?) e os restantes inéditos
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Então, vamos fazer um filme?
Vamos, claro.
Ta bom! A gente precisa definir algumas coisas.
É? Que coisas?
Ah! Sei lá, um monte delas.
Tipo o quê?
Ah! Estilo, esse é um ponto, o estilo.
Como assim definir um estilo?
Ora! Que linha a gente vai seguir.
Estilo?
É!
A gente vai fazer um filme ou a gente vai fazer um estilo?

* * *
A gente precisa terminar.
O que você disse?
Eu vim aqui com a idéia fixa de terminar.
Pois é! Já desconfiava. Você não tem me dado atenção, não tem dedicado seu afeto...
Não é isso...
Você não tem sido você!
Não é isso!
O que é então?
A gente só tem que terminar.
Olha, a gente tá junto há dez meses, eu sei que você não acredita nisso, mas eu sei, eu sei, eu quero ficar pra sempre contigo, e isso é possível.
Eu não sei, não é isso.
(Ela: silêncio doído)
Vem aqui!
Você pode ir!
Não, eu não vou mais.

* * *
A gente vai fazer um filme, mas a gente precisa de um estilo.
Quem disse isso?
Eu disse.
Você?
É!
Você sozinho?
Porra!? E mais quem seria?
Sei lá, você quer um estilo.
E que isso tem a ver.
Nada, nada, esquece. Vai, fala do estilo.

* * *
Inúmeras pessoas. Se isso aqui fosse um filme, você poderia ver aquele monte de gente, com seus copos nas mãos, seus cigarros ardendo e desenhando rastros avermelhados na penumbra da noite. Mas dessas tantas, se isso aqui fosse um filme, a câmera daria um close Nele, afoito, mas excitado, um corte, outro close, agora Noutra, soturna Noutra, senhora. Esse casal de anônimos dançando uma valsa perigosa. Porém isso aqui não é um filme, e a música ambiente é outra.

* * *
Eu não sei, a gente podia discutir planos, que é uma questão de estilo.
Planos ou estilo?
Plano, quer dizer, estilo, porra, os dois.
A gente nem discutiu o primeiro ponto e já pulou logo pro segundo, gostei disso.
Disso o quê?
Do seu estilo.

* * *
Você não sente falta?
De quê?
Não tem necessidade?
De quê?
Desejo.
O que você acha?
Eu quero saber se você sente tanto quanto eu.
Isso é impossível.
Por quê?
Porque somos pessoas diferentes.

* * *
A gente pega o casal de cima.
De cima?
É! De cima, enquadra a cama e o casal, ele de barriga pra cima, os braços sustentando a cabeça, servindo de travesseiro.
Legal!
Você concordou?
Não!
Então o quê?
Eu só achei legal.

* * *
Um pedaço de gente se foi pelo ralo. A privada foi seu túmulo. Um enterro de merda. Aquele excremento orgânico seria agora adubo. Ou talvez alimento de ratos no esgoto. Os ratos se fartando de um derrame humano. Quem sabe ele tentasse a ressurreição numa noite de dilúvio. Porém o mais provável é que estivesse vivo na consciência de Alguns.

* * *
Ela pode ficar logo à frente dele, perninhas de índio, tensa, não vamos mostrar o rosto dela.
Por quê?
Não sei, a gente pode criar um suspense.
Suspense de quê?
Suspense, porra, suspense.
Tá bom então.
Ta bom o quê?
Nada, deixa pra lá.
Fala!
Deixa pra lá.
Fala logo, porra!
Ta bom, eu falo, não é nada demais, é só que você não tinha me dito no começo que ia ser um filme de suspense.

* * *
Quando foi?
Ontem à noite.
Você gostou?
Devo ter gostado.
Devo ter gostado!? Que isso de devo ter gostado?
Isso é uma dúvida, satisfeita?
Sei, uma dúvida. Sei bem disso.
Sabe mesmo?
Sei sim.
O que você sabe?
Sei que você não me quer mais, que ontem você tava trocando carinhos com outra, me emprestando pra outros corpos sem minha autorização, sei de muito mais.
Você não sabe de nada!
Quem é você pra me dizer daquilo que sei ou não?
Sou o outro, uma posição muito mais cômoda e privilegiada.
O que você quer dizer com isso?
Você não sabe, não sabe mesmo, você duvida disso tudo, porque se não duvidasse, se realmente soubesse, não retardaria tanto a minha partida, e não estenderia tanto assim a sua dor.

* * *
O que você acha dos planos, de verdade?
Acho interessantes.
Gostou dos meus?
Legais.
Mas gostou?
São legais.
Porra! Isso me irrita.
Você não gosta?
Detesto.
Não devia, sei lá, não devia, são suas próprias idéias.

* * *
Um baile da terceira idade se encarrega de lembrar o destino de cada um. Mas é mentira. Alguns não conseguem atingir a idade senil. Será que Noutra pensa nisso? Não, é senhora, soturna, está embriagada demais e ocupada com os mundos do inconsciente. Jamais pensaria nisso. Que em algum lugar, um membro dela amputado por ela mesma, estaria vagando já na noite eterna. Dentro da noite veloz do esgoto. Goela adentro mais um gole de vodka e vamos pra frente que pra trás ficou gente. Ou quase isso. Ou talvez muito longe disso. Mas Noutra não pensa nisso. Será que seria esse o nome dele? Nisso? Talvez Nissa, se fosse menina. Noutra não pensa.

* * *
Tem um filme que tem uns planos interessantes.
Nossa, até que enfim!
Até que enfim o quê?
Uma proposta sua.
Ah! Não é bem isso.
O que é então?
É o filme, ora!
Que filme, o nosso?
Não, o que eu falei, dos planos interessantes.
Qual é esse?
Boca.
Boca? Com dois cês?
Não, cara, um só, de onde você tirou isso?
De lugar nenhum. Me fala do filme, de quem é?
Carlos Henrique dos Santos.
Carlos Henrique dos...? Sei, sei, aquele de A volta dos que não foram.
Esse mesmo.
Que tem os planos?
São interessantes, já disse.
Sim, mas me fala deles.
Falar?
É, porra me fala deles?
Não seria melhor você assistir em vez de eu te falar?

* * *
Acho que já sei qual foi meu erro.
Acha mesmo?
Acho, acho sim, e me arrependo profundamente disso.
Deve ser doloroso.
O quê? Errar?
Não, se arrepender.
O arrependimento é uma ferida cicatrizada.
Pode ser, e a cicatriz tá sempre à vista.
Acho que sei o motivo da minha.
Você já falou.
Foi toda essa luz que eu te dei.
Que luz?
Não se faz de desentendido.
Então será que você se incomoda se eu desligar o interruptor?

* * *
A gente tem que pensar na música também. É fundamental.
A música é o fundamento do filme?
Não, porra!
Mas você acabou de dizer isso.
Eu disse outra coisa.
O que foi então?
Que a música é fundamental e não que é o fundamento do filme.
Ah sim! Foi mal!
Beleza.
Foi mal mesmo, é que por um momento eu pensei que você já tivesse mudado de idéia outra vez sobre o filme.
Eu não. O que você pensou?
Você queria um romance, depois passou pro suspense e agora eu achei que você tinha decidido por um musical, tipo Broadway, sabe?

* * *
A morte é uma matéria da literatura, não da vida. Num cartaz qualquer estampa-se o apodrecido. Precedido de uma negativa. A-Nisso. Retinas vivas dilatam-se ante a cruel constatação. Arde no peito um punhal incandescente atravessado no músculo cardíaco. Nele sorri, como sempre faz. Noutra admira, ou está admirada, ou então mira. Qualquer paisagem é um reflexo de outra coisa qualquer. Faces vivas encarando a morte. A-Nisso. Poderia ser: há Nisso no mundo. Mas não. Só um cartaz estampado com o passado de algumas pessoas. Se isso aqui fosse um filme, talvez a câmera servisse de olhos a você.

* * *
Mudando de assunto, como é que vai aquela situação?
Qual delas?
Aquela, com a menina.
Acabou, eu acho.
Acabou?
É, foi o fim, sei lá, como é que a gente chama isso no cinema?
De muitas formas.
Então escolhe uma.
Vou fazer isso.
Ah, aproveitando a mudança de assunto, a sua história vai mal ainda?
Vai sim, mas às vezes penso que já foi.
Como assim?
Bem, já se foi.
Sei.
Será que volta?
Quem vai saber!?
Difícil mesmo.
A gente não precisa pensar nisso.
Mas tem como não pensar?
Não, você tem razão, por que a gente não vai embora?
Pode ser, paga a conta que eu to duro.
Porra, eu também.
Fodeu!
Que nada, a gente pendura. Silvinho é gente boa.
Sei, mas não to falando disso.
De quê então?
Eu tô pensando em como a gente vai fazer um filme se não tem nem o da conta do bar.

sábado, setembro 15, 2007

Carta para um amor antigo

Ler seu texto foi tão complicado – mas não no sentido de algo entediante ou frustrante – quanto a minha tentativa de ler você. E a dificuldade – vou me apropriar de um jogo de palavras seu – é exatamente tentar ler em você alguma palavra nova de mim mesmo.

Não considerei seu texto-você contraditório, mas sim denso e complexo, cheio de caminhos pelos quais o leitor se vê na dúvida de seguir. Só sabe que deve seguir algum. E talvez a escolha seja perigosa demais, e por isso a mais sedutora.

E a única certeza que o leitor desse texto-você pode ter – onde reside o real prazer da leitura – é que o retorno é impossível; querer o repetido ou o antigo não cabe em nenhum desses caminhos. Não sei se me faço claro, porque esta não é minha melhor virtude.

Como li no texto que é você, e que fala um pouco do que sou eu, me questionei: minha inconstância (porém não inconsistente – adorei a imagem!) está em quem? Será que sou tão desligado assim das outras pessoas? Não existe fundamento nas minhas características que sejam construídas no outro?

São muitas dúvidas!

Queria poder simplificar os questionamentos, mas meus anos de vida ainda não me deram essa habilidade. Se é que eles me darão!

Talvez as pessoas pequem ao se deixarem oprimir por projeções. Somos acostumados a sempre pensar no antes e no depois. E quando fazemos isso, pioramos ainda mais nosso pecado, pois somos deterministas em nossos discursos, e esquecemos de toda improbabilidade que nos rege. Por isso a inconstância toma conta em alguns momentos, porque não fazemos deles nossas lembranças mais bonitas, ou mais frustrantes, ou o que quer que seja, para destas tirarmos conclusões menos improváveis e mais construtivas.

Se não acreditarmos nas palavras que saem da boca dos outros, em que mais poderemos acreditar? Devemos ser então desacreditados de tudo? O que é o tempo se não a maneira como o experimentamos? Ou matamos o tempo ou o tempo nos mata (isso não é meu).

Não descordo que os sentimentos sejam efêmeros. Só discordo de afirmações categóricas sobre o futuro. Isso foge ao que a vida representa de maneira sui generis.

Sobre relações antigas, as minhas serão sempre antigas, por mais recentes ou particulares que sejam. Mas serão sempre antigas. O algo novo estará na maneira como eu as enxergo daqui, deste tempo. Tenho mais a viver agora do que aquilo que já não vivo mais. E, no novo, sempre deito fora de mim meus recalques, algo que não conseguiria fazer no antigo.

Mas um dos pontos que mais me instigam nessa nossa relação (me permita chamar assim) é a idéia de fuga. Porque me acomete diretamente a questão. Você fugiu de mim? Precisamos ter alguma certeza sobre isso. Não será essa fuga de mim uma fuga de ti mesmo?

Se for de ti mesmo, digo que não é nada anormal, pois todos têm suas conjecturas em estágio de desenvolvimento pleno e constante. Mas se a fuga for realmente de mim, digo que ela é vã. E não podemos esquecer daquele pensamento batido em multiprocessador: toda escolha é uma renúncia. Mas isso não significa que a escolha, ou a renúncia, seja obrigatória, ou imposta em determinado instante. No entanto, mais cedo mais tarde, fica patente a solução.





Redu
Redun
Redu
Redun
Ânsia
Redu
Redun
Dança
Redu
Redun
Cansa
Redu
Redun
Redu
Redun
Samba
Enfatização