((estou organizando meu terceiro livro (na verade tenho outros em andamento) e aproveito para deixar um dos quatro contos já finalizados; a princípio, terá como nome As múltipla faces da folha, que fala de esquizofrenia e loucura, o que só é perceptível na leitura integral dos textos, mas isoladamente é possível enxergar algum traço de loucura; aos poucos vou publicando os textos aqui; a quem ler, um bom texto))
São dez da manhã e o despertador toca. Vai começar tudo de novo. Sérgio leva mais alguns minutos antes de começar. Se contarmos esse tempo como perdidos, poderíamos dizer que nada começou. Cada um acha uma coisa. Para Sérgio não importa muito. Poucos são aqueles que pensam nisso no momento do ato. Os movimentos são quase mecânicos. Sérgio segue sua rotina. Nunca toma café da manhã. Talvez porque acorde tarde. Cumprimenta Bia, já de avental na cozinha, e ao mesmo tempo se despede dela com gestos. Não raro as rotinas de algumas pessoas se coincidem. Horários, hábitos, vícios, corpos. No elevador ele encontra Eva. Disfarça com certa perspicácia. Ela ausente a ele. Não estão sozinhos, mas para ele é como se fosse. E assim acaba sendo. Ou não. Deixemos isso por conta. Acontece todos os dias quando, exceto fim de semana, claro, ele quase se engasga com a própria saliva quando encontra Eva. Sempre ali, no elevador, na ida e na volta. Térreo. Segue a trama e Sérgio também. Sabe dirigir mas não gosta de assumir volante. Prefere transporte coletivo, olhar os contornos do trajeto, sentir cheiro único das ruas por onde passa, saber chegar, quando for a ocasião, ao ponto de referência de um encontro.
Sérgio é um cara simples, de poucos, mas bons amigos. Clichês à parte. Estudante de biblioteconomia, estagia na nacional daquele país – qual mesmo? – e ainda é cinéfilo. Assiste muito pouco às aulas. Vive junto dos livros e dos filmes. Já leu e viu muita coisa. Nem cabe citar. No Cine Plaza Clássicos se educou em cinema. Tentou até se transferir para o curso mas desistiu. Sérgio desce do ônibus e caminha até a universidade. Na entrada panfletos e adesivos. São as eleições para a reitoria. Não há debates. Apenas bocas e sorrisos com meia dúzia de palavras decoradas às pressas. Hoje, a arte política não consiste em gerir a pólis (essa se gera por si mesma, segundo a lógica de seu mecanismo obscuro e incontrolável), mas em inventar pequenas frases pelas quais o homem político será visto e compreendido, votado nas sondagens, eleito e não eleito. Essas palavras vieram de um livro. Sérgio não se lembra de qual. Ademais a aula já começou. Para Sérgio, claro, ainda não. Ele entra, pedindo licença, fingindo educação, debochado, ao mesmo tempo sorri, senta num canto, liberta o pensamento, transcorrem minutos, responde presente, então ele parte.
Fabiana já o espera. Vão juntos ao bosque do campus. Não são muito comunicativos. Introspectivos, talvez. Fumam mudos. Também mexem muito pouco seus membros, quase um quadro, se visto de um determinado ângulo. Na verdade são um plano longo. São talvez quase palavras. Mas são apenas eles. Sérgio e Fabiana. Fumam mudos, mas juntos. Terminam. Ele saca da bolsa um livro sobre teoria da documentação. Folheia algumas páginas. Percebe então a besteira que ia fazer e abandona o texto. Toma outro nas mãos. Sempre carrega muitos. Agora é Teatro, Bernardo Carvalho. Lê tranqüilo, nenhuma expressão no rosto. Parece dentro da leitura. Seu corpo, inerte, é apenas um indício de que seu espírito está dentro de outra realidade, talvez cruzando uma fronteira com os pais, talvez sendo um polícia qualquer.
Fabiana enfim fala. Enfim alguém fala. Mas ela fala o necessário. Eles vão até a biblioteca. Sérgio lê as notícias no jornal como costuma fazer enquanto Fabiana passeia livre pelas prateleiras de escritores latinos. Jornal: governo em crise, time do coração derrotado, bolsa em baixa, estréia no municipal, best seller internacional, conflitos étnicos et cetera e tal. Prateleiras: histórias de amor, maldição eterna a quem ler estas páginas, ninguém nada nunca, ninguém escreve ao coronel, morangos mofados, eles eram muitos cavalos, tanta coisa, até crime e castigo no lugar errado. A impressão é que Fabiana quase desliza pelo assoalho da biblioteca. Sérgio segue alheio a isso penetrado nos fatos que aparentemente marcam o dia. Só aparentemente mesmo. Cada um tem o seu dia marcado de um jeito bastante particular.
Fabiana fala outra vez, mas pouco, como antes. Eles saem da biblioteca para certamente entrarem em algum outro lugar. A vida é um entra-e-sai constante. É hora do almoço que, como dito, uma hora entra e depois sai; eles comem calados, de bocas fechadas, fingindo educação. Na cabeça de Sérgio uma cena repete: No elevador ele encontra Eva. Disfarça com certa perspicácia. Ela está ausente a ele. A cena pára nesse ponto. Sérgio não se lembra da parte em que ocorre seu pseudo-otimismo, quando se vê só, mas junto dela, Eva. Fabiana encerra a refeição. Então Sérgio desperta do seu devaneio. Vão mais uma vez para o bosque, depois de terem tomado um café ralo de cortesia, e acendem mais um para fumarem. É o digestivo nosso de cada almoço. A despedida acontece. Fabiana fica frustrada mais um dia. Como tem sido em todos.
Sérgio continua sua rotina um pouco atormentado pelas imagens de Eva. Sempre ali, no elevador, na ida e na volta. Mas agora, na biblioteca, no seu estágio, não. Cada elevador é uma lembrança talvez dolorosa, ele geme por dentro, chega o andar da nacional. Janaína é a primeira silhueta branca no meio a escuridão anterior. Olá! Olá! Enfim mais alguém fala. Mas pouco. A folha de ponto ganha um rabisco que nem de perto lembra o nome Sérgio. Seu cotidiano até parece dividido em parágrafos.
No escritório de Janaína alguns assuntos eruditos demais para serem descritos, outros não, se desenrolam. Os dois repartem as rosquinhas e tomam café, agora não ralos, porque possíveis com o dinheiro público. Para Sérgio não importa muito. Poucos são aqueles que pensam nisso no momento do ato. E por enquanto a espera é inevitável. Todos os dias faz como se fosse um aparelho programado. Tempo do papo, tempo do balcão, dar um jeitinho nos livros, ler algo que ainda não está terminado – e que nunca estará realmente –, jogar conversa fora com Che, como é conhecido o zelador em vista de uma tal semelhança física tão somente, admirar a vista privilegiada do prédio, despedir-se de todos, que são pouquíssimos, e partir.
Hora do rush. As ruas são uma massa que se modifica a cada instante. As pessoas parecem cardumes descrevendo, no meio da pressa, formas estranhas, que se vistas de cima, como os peixes, são até bonitas. É difícil identificar Sérgio no meio dessa multidão. Nessas ocasiões, ninguém é apenas um só, é parte de um todo, em conflito, verdade, mas um todo, sem dúvida. Aquele que não tem rumo deve seguir a multidão, há sempre um lugar aonde ir. Para Sérgio o séqüito tem suas companhias. Não raro as rotinas de algumas pessoas se coincidem. Horários, hábitos, vícios, corpos. No ônibus, faz anotações avulsas num bloquinho de papel, descreve Ana, esse nome ele deu para ela, a menina, quinze anos talvez, com quem encontra todos os dias, seios grandes, um dentinho um pouco trepado, charmoso, roupas estilo udigrude, três brincos em cada orelha, fones de ouvido tocando alguma música. Mas Sérgio apenas anota impressões e desce, sem terminar a descrição da menina, três pontos antes, para se sentar em uma mesa ao lado de Jorge, que já terminou a primeira cerveja.
Depois do aperto de mãos e de um abraço meio convencional, os dois dividem a segunda cerveja e ali vão ficar, quase mudos, de tão introspectivos que são, até a quinta ou sexta garrafa, olhando os corpos conhecidos que por ali passam todos os dias, exceto fim de semana, claro. Sérgio nem tem tanta intimidade assim com Sérgio, tem apenas o time de coração em comum. Ele somente aguarda um instante capital de sua ida e volta diária, mas Jorge não precisa saber disso, que é apenas um passatempo, que entre um caça-palavras e ele não existe diferença para Sérgio. A cada momento uma diva, uma musa, uma mulher gostosa, como prefere a maioria, passa em frente ao bar com calça e blusa apertadas e curtas, valorizando curvas e fendas. Não só Sérgio e Jorge, mas sim todos os machos da espécie interrompem suas falas, suas caras e dão lugar a suas taras mais secretas, que por serem assim, não há como revelá-las.
Ali já está acabado, pela primeira vez no dia, Sérgio rouba as horas com os olhos no relógio de outra pessoa, é quase o instante da partida, nem vai ter uma saideira que Sérgio está de saída antes da chegada da última cerveja. Alguns diriam ser isso uma falha de etiqueta, mas para Sérgio não e ele nem se importa muito se é ou não. Dali até o elevador, mais alguns minutos passados da vida.
Na entrada do prédio, Sérgio é questionado sobre a razão de sua visita. Porteiro novo? Então Sérgio explica que é morador. O novo empregado se desculpa e Sérgio nem responde, acelera o passo, pode ter perdido a hora, mas não, o contador de horas do hall indica que ele está adiantado. Bunda e cadeira se encontram. Para Sérgio não é problema esperar, é só o que tem feito a vida toda, esperar alguma coisa, alguma pessoa, esperar o ônibus, a estréia do novo filme de um cineasta badalado, o novo título literário de um escritor marginal, esperar que a espera acabe. O curioso é que Sérgio não tem fantasias, apenas um bloquinho de papel onde talvez anote, sem que ninguém perceba, seus sonhos e suas utopias, mas sobre isso não se pode ter certeza, aliás sobre nada. A hora de agora já não é a mesma de antes, nunca é, talvez só os algarismos se repitam, mas o tempo não é um, dois ou três números, o tempo é gozo.
Ela não vem mais e Sérgio constata, abismado, que sua rotina foi quebrada, as peças fora do lugar, estão perdidas sem que se possa encontrá-las, não há um desfecho que Sérgio esperava, Eva não aparece, não sobe o elevador junto dele, na verdade ninguém sobe, só ele, que chega a pensar em morte, porque está só num lugar onde todos os dias se vê acompanhado, de Eva, dos outros, o andar chega e mais alguns passos à frente, a porta, os olhos de Sérgio brilham além do normal, ele não encontra as chaves, escorre pela parede feito tinta fresca, se senta no chão tentando encontrar o erro daquele dia, não consegue, mas as chaves tilintam em seu bolso, ele nunca as carrega lá, mas hoje sim, ele as levou nele, três voltas na primeira tranca, quatro na segunda, aquele apartamento é uma fortaleza, ele entra, há um silêncio não habitual, Sérgio estranha, percorre os cômodos, não encontra ninguém, apenas Lucas, já deitado e roncando alto, Sérgio vai até a cozinha e constata que não apenas Eva, não apenas as chaves, outra coisa fugiu de seu controle, Bia não deixou seu jantar nas panelas, elas estão limpas e escorrendo o pouco que lhes sobra de água, Sérgio sente uma tontura, deve ser isso, essa sensação de mal-estar, deve ser isso, a ele não resta mais nada, então ele vai até seu quarto, nem tira a roupa, se esparrama na cama e adormece, sem perceber que dos cinco religiosos banhos que costuma tomar por dia, hoje, nem mesmo um.
Sérgio é um cara simples, de poucos, mas bons amigos. Clichês à parte. Estudante de biblioteconomia, estagia na nacional daquele país – qual mesmo? – e ainda é cinéfilo. Assiste muito pouco às aulas. Vive junto dos livros e dos filmes. Já leu e viu muita coisa. Nem cabe citar. No Cine Plaza Clássicos se educou em cinema. Tentou até se transferir para o curso mas desistiu. Sérgio desce do ônibus e caminha até a universidade. Na entrada panfletos e adesivos. São as eleições para a reitoria. Não há debates. Apenas bocas e sorrisos com meia dúzia de palavras decoradas às pressas. Hoje, a arte política não consiste em gerir a pólis (essa se gera por si mesma, segundo a lógica de seu mecanismo obscuro e incontrolável), mas em inventar pequenas frases pelas quais o homem político será visto e compreendido, votado nas sondagens, eleito e não eleito. Essas palavras vieram de um livro. Sérgio não se lembra de qual. Ademais a aula já começou. Para Sérgio, claro, ainda não. Ele entra, pedindo licença, fingindo educação, debochado, ao mesmo tempo sorri, senta num canto, liberta o pensamento, transcorrem minutos, responde presente, então ele parte.
Fabiana já o espera. Vão juntos ao bosque do campus. Não são muito comunicativos. Introspectivos, talvez. Fumam mudos. Também mexem muito pouco seus membros, quase um quadro, se visto de um determinado ângulo. Na verdade são um plano longo. São talvez quase palavras. Mas são apenas eles. Sérgio e Fabiana. Fumam mudos, mas juntos. Terminam. Ele saca da bolsa um livro sobre teoria da documentação. Folheia algumas páginas. Percebe então a besteira que ia fazer e abandona o texto. Toma outro nas mãos. Sempre carrega muitos. Agora é Teatro, Bernardo Carvalho. Lê tranqüilo, nenhuma expressão no rosto. Parece dentro da leitura. Seu corpo, inerte, é apenas um indício de que seu espírito está dentro de outra realidade, talvez cruzando uma fronteira com os pais, talvez sendo um polícia qualquer.
Fabiana enfim fala. Enfim alguém fala. Mas ela fala o necessário. Eles vão até a biblioteca. Sérgio lê as notícias no jornal como costuma fazer enquanto Fabiana passeia livre pelas prateleiras de escritores latinos. Jornal: governo em crise, time do coração derrotado, bolsa em baixa, estréia no municipal, best seller internacional, conflitos étnicos et cetera e tal. Prateleiras: histórias de amor, maldição eterna a quem ler estas páginas, ninguém nada nunca, ninguém escreve ao coronel, morangos mofados, eles eram muitos cavalos, tanta coisa, até crime e castigo no lugar errado. A impressão é que Fabiana quase desliza pelo assoalho da biblioteca. Sérgio segue alheio a isso penetrado nos fatos que aparentemente marcam o dia. Só aparentemente mesmo. Cada um tem o seu dia marcado de um jeito bastante particular.
Fabiana fala outra vez, mas pouco, como antes. Eles saem da biblioteca para certamente entrarem em algum outro lugar. A vida é um entra-e-sai constante. É hora do almoço que, como dito, uma hora entra e depois sai; eles comem calados, de bocas fechadas, fingindo educação. Na cabeça de Sérgio uma cena repete: No elevador ele encontra Eva. Disfarça com certa perspicácia. Ela está ausente a ele. A cena pára nesse ponto. Sérgio não se lembra da parte em que ocorre seu pseudo-otimismo, quando se vê só, mas junto dela, Eva. Fabiana encerra a refeição. Então Sérgio desperta do seu devaneio. Vão mais uma vez para o bosque, depois de terem tomado um café ralo de cortesia, e acendem mais um para fumarem. É o digestivo nosso de cada almoço. A despedida acontece. Fabiana fica frustrada mais um dia. Como tem sido em todos.
Sérgio continua sua rotina um pouco atormentado pelas imagens de Eva. Sempre ali, no elevador, na ida e na volta. Mas agora, na biblioteca, no seu estágio, não. Cada elevador é uma lembrança talvez dolorosa, ele geme por dentro, chega o andar da nacional. Janaína é a primeira silhueta branca no meio a escuridão anterior. Olá! Olá! Enfim mais alguém fala. Mas pouco. A folha de ponto ganha um rabisco que nem de perto lembra o nome Sérgio. Seu cotidiano até parece dividido em parágrafos.
No escritório de Janaína alguns assuntos eruditos demais para serem descritos, outros não, se desenrolam. Os dois repartem as rosquinhas e tomam café, agora não ralos, porque possíveis com o dinheiro público. Para Sérgio não importa muito. Poucos são aqueles que pensam nisso no momento do ato. E por enquanto a espera é inevitável. Todos os dias faz como se fosse um aparelho programado. Tempo do papo, tempo do balcão, dar um jeitinho nos livros, ler algo que ainda não está terminado – e que nunca estará realmente –, jogar conversa fora com Che, como é conhecido o zelador em vista de uma tal semelhança física tão somente, admirar a vista privilegiada do prédio, despedir-se de todos, que são pouquíssimos, e partir.
Hora do rush. As ruas são uma massa que se modifica a cada instante. As pessoas parecem cardumes descrevendo, no meio da pressa, formas estranhas, que se vistas de cima, como os peixes, são até bonitas. É difícil identificar Sérgio no meio dessa multidão. Nessas ocasiões, ninguém é apenas um só, é parte de um todo, em conflito, verdade, mas um todo, sem dúvida. Aquele que não tem rumo deve seguir a multidão, há sempre um lugar aonde ir. Para Sérgio o séqüito tem suas companhias. Não raro as rotinas de algumas pessoas se coincidem. Horários, hábitos, vícios, corpos. No ônibus, faz anotações avulsas num bloquinho de papel, descreve Ana, esse nome ele deu para ela, a menina, quinze anos talvez, com quem encontra todos os dias, seios grandes, um dentinho um pouco trepado, charmoso, roupas estilo udigrude, três brincos em cada orelha, fones de ouvido tocando alguma música. Mas Sérgio apenas anota impressões e desce, sem terminar a descrição da menina, três pontos antes, para se sentar em uma mesa ao lado de Jorge, que já terminou a primeira cerveja.
Depois do aperto de mãos e de um abraço meio convencional, os dois dividem a segunda cerveja e ali vão ficar, quase mudos, de tão introspectivos que são, até a quinta ou sexta garrafa, olhando os corpos conhecidos que por ali passam todos os dias, exceto fim de semana, claro. Sérgio nem tem tanta intimidade assim com Sérgio, tem apenas o time de coração em comum. Ele somente aguarda um instante capital de sua ida e volta diária, mas Jorge não precisa saber disso, que é apenas um passatempo, que entre um caça-palavras e ele não existe diferença para Sérgio. A cada momento uma diva, uma musa, uma mulher gostosa, como prefere a maioria, passa em frente ao bar com calça e blusa apertadas e curtas, valorizando curvas e fendas. Não só Sérgio e Jorge, mas sim todos os machos da espécie interrompem suas falas, suas caras e dão lugar a suas taras mais secretas, que por serem assim, não há como revelá-las.
Ali já está acabado, pela primeira vez no dia, Sérgio rouba as horas com os olhos no relógio de outra pessoa, é quase o instante da partida, nem vai ter uma saideira que Sérgio está de saída antes da chegada da última cerveja. Alguns diriam ser isso uma falha de etiqueta, mas para Sérgio não e ele nem se importa muito se é ou não. Dali até o elevador, mais alguns minutos passados da vida.
Na entrada do prédio, Sérgio é questionado sobre a razão de sua visita. Porteiro novo? Então Sérgio explica que é morador. O novo empregado se desculpa e Sérgio nem responde, acelera o passo, pode ter perdido a hora, mas não, o contador de horas do hall indica que ele está adiantado. Bunda e cadeira se encontram. Para Sérgio não é problema esperar, é só o que tem feito a vida toda, esperar alguma coisa, alguma pessoa, esperar o ônibus, a estréia do novo filme de um cineasta badalado, o novo título literário de um escritor marginal, esperar que a espera acabe. O curioso é que Sérgio não tem fantasias, apenas um bloquinho de papel onde talvez anote, sem que ninguém perceba, seus sonhos e suas utopias, mas sobre isso não se pode ter certeza, aliás sobre nada. A hora de agora já não é a mesma de antes, nunca é, talvez só os algarismos se repitam, mas o tempo não é um, dois ou três números, o tempo é gozo.
Ela não vem mais e Sérgio constata, abismado, que sua rotina foi quebrada, as peças fora do lugar, estão perdidas sem que se possa encontrá-las, não há um desfecho que Sérgio esperava, Eva não aparece, não sobe o elevador junto dele, na verdade ninguém sobe, só ele, que chega a pensar em morte, porque está só num lugar onde todos os dias se vê acompanhado, de Eva, dos outros, o andar chega e mais alguns passos à frente, a porta, os olhos de Sérgio brilham além do normal, ele não encontra as chaves, escorre pela parede feito tinta fresca, se senta no chão tentando encontrar o erro daquele dia, não consegue, mas as chaves tilintam em seu bolso, ele nunca as carrega lá, mas hoje sim, ele as levou nele, três voltas na primeira tranca, quatro na segunda, aquele apartamento é uma fortaleza, ele entra, há um silêncio não habitual, Sérgio estranha, percorre os cômodos, não encontra ninguém, apenas Lucas, já deitado e roncando alto, Sérgio vai até a cozinha e constata que não apenas Eva, não apenas as chaves, outra coisa fugiu de seu controle, Bia não deixou seu jantar nas panelas, elas estão limpas e escorrendo o pouco que lhes sobra de água, Sérgio sente uma tontura, deve ser isso, essa sensação de mal-estar, deve ser isso, a ele não resta mais nada, então ele vai até seu quarto, nem tira a roupa, se esparrama na cama e adormece, sem perceber que dos cinco religiosos banhos que costuma tomar por dia, hoje, nem mesmo um.