quarta-feira, novembro 05, 2008

Egoísmo em primeira pessoa


“naquele dia eu escrevi teus olhos
e a partir de então,
você passou a usá-los...”


EU me lembro exatamente o dia e como recebemos a notícia. Domingo. Manhã de 7 de fevereiro de 1999. A cidade já respirava confetes e serpentinas. Eu atendi quando Pereira ligou. Agradeci sem muitas palavras. Ao dar a notícia ao meu irmão, vi seu corpo desabar completamente sem forças no chão. Todos o foram amparar, menos eu. Confesso que petrifiquei ao presenciar aquela cena. Ana não sabia onde meter o choro, se entre as mãos ou nos braços. Lucas, o mais velho, tentava em vão despertar meu irmão do desmaio. Fabiana, a do meio, soltava um murmúrio de meu deus, minha nossa senhora, todos os santos. Ela não acreditava. Nem eu. Ninguém jamais aceitou a idéia de encontrar um corpo. Jorginho seria sempre uma criança, mesmo que apenas na lembrança distorcida de todos nós. A cena familiar logo virou espetáculo. A mídia televisiva e impressa enchia seus cofres de cifras com a tragédia alheia. Flashes e câmeras e textos não deixavam ninguém esquecer. Nem mesmo Che, o cão da família, sempre desamparado pelos cantos do quintal. Curiosamente, desde o desaparecimento de Jorginho, Che jamais me respeitara. Latia ao me avistar ainda de longe, impetuosamente. Mas logo recolhia o rabo entre as pernas quando eu me aproximava e seu instinto reconhecia minha superioridade. Mas verdade é que quem se fechou completamente para o mundo foi meu irmão, pirou, pode-se dizer. Eu até senti pena dele. O estranho é que a maneira de se enclausurar foi se expor ainda mais. À época dos sensacionalismos, ele era figura presente em todos os programas aos quais fosse convidado. Chorava copiosamente à frente das lentes. Sempre uma careta diferente estampada nos jornais. Suas palavras iam se tornando um gênero comum a muitas outras pessoas. Uma conta em solidariedade foi aberta num ano em que os banqueiros mais uma vez batiam todos os recordes de lucro. Ana não pôde suportar uma vida sem o caçula e fora morar na serra. Se por um lado, confesso mais uma vez, a meu irmão dei o desprezo desde o início, por outro me dediquei inteiramente à Ana. Afinal, ela era o amor da minha vida. Meu irmão não a merecia. Ele não podia tocá-la todas as noites, não com aquelas mãos que ele esfregava nas putas da orla. Em algumas oportunidades até em travecos. Eu mesmo o fotografei e enviei secretamente o conteúdo do flagrante pelo correio à Ana, atormentada, que mesmo assim, diante dessa vergonha, sustentava o relacionamento, porque não queria criar os filhos sem a figura paterna. Meu irmão não tinha esse direito. Vai ver recebeu o castigo que merecia ao perder o filho. Mas Ana não merecia esse desgosto de não ter mais o filho querido, em quem pudesse beijar feito uma boba, sem se preocupar com rugas ou pés de galinha. Porque para Jorginho, Ana era a mulher mais bonita do mundo. E realmente ela era. Eu mesmo a presenciei inúmeras vezes aos beijos com os filhos, jeito lindo de boba. Ela sempre pareceu não se importar com as minha espiadas, até sorria para mim às vezes. Ela teria sido muito mais feliz se tivesse me escolhido. Talvez não fosse necessária a morte de ninguém. Depois que Jorginho partiu, no entanto, ela não teve escolha. Criou-se um abismo entre ela e meu irmão. A incomunicabilidade dissolvera por completo o relacionamento. Enquanto um tentava perpetuar sua tristeza nos meios de comunicação, o outro só pensava em refletir o silêncio causado pela morte de Jorginho. Ela não teve escolha. Somente eu me dispusera a dedicar tamanha atenção. De um ponto de vista bastante egoísta, a morte de Jorginho me trouxera um benefício sem tamanho. Eu estava agora todo a disposição do meu amor, na exata condição em que aqueles que amam gostar de estar. Eu estava à mercê, feliz e à mercê. A tristeza constante de Ana, na verdade, em nada me incomodava, para ser mais sincero, eu me deleitava com aquela tristeza e a profunda dependência de um ombro, o meu em todas as ocasiões, pronto para afagos e socos, carícias ou mordidas, Ana tinha inúmeras formas de desabafar, e eu estava sempre à mercê. Do meu irmão, por muito tempo, só tive notícia pelas manchetes. Vez ou outra ele se abraçava a alguma causa em defesa dos pais que perderam seus filhos muito cedo e de maneira trágica. A última vez que nos vimos foi no enterro do menino. Uma verdadeira comoção nacional. Na ocasião, o dia até decidiu contribuir e, debaixo de um imenso temporal, uma procissão de guarda-chuvas seguiu em cortejo até o jazigo de Jorginho, as pessoas rezando pais-nossos e ave-marias, até hino nacional cantaram. O arcebispo fez uma extrema-unção tardia e simbólica do menino, provavelmente sem pecados àquela idade. Para quase todos, ele era um anjinho. Os holofotes das emissoras jorravam luz sobre o pequeno caixão sendo abaixado até o fundo da cova. Até mesmo uma associação de carpideiras ofereceu seus serviços, gratuitamente, tamanha a barbaridade do crime que levara a vida daquela criança. Ana, é claro, não foi àquele funeral folclórico. Eu tive que ir, não podia me demonstrar alheio ao fato, confesso de novo que até concedi uma entrevista, com rápidas e ensaiadas palavras. Meu irmão, ao ver o rosto de Pereira, não conteve seu ímpeto e disparou em sua direção, na frente das câmeras, enxergando cegamente num detetive o que ele acreditava ser a inoperância do estado. Durante os anos seguintes, defendeu com unhas e dentes a culpabilidade do estado na morte de seu filho. Mais uma vítima, segundo ele, do estado de calamidade pública que põe as pessoas umas contra as outras, feito animais selvagens, incapazes de discernimento. Porque seu filho – ele sempre chorava nessas horas – era apenas uma criança, incapaz até mesmo de defesa própria – ele ainda soluçava -, uma verdadeira covardia. Mas o fato é que Pereira jamais desgrudou do caso Jorginho. Esteve sempre decidido a fazer daquele o caso de sua vida. Meu irmão, embora o odiasse com todo o coração, não deixava de enxergar nele o fundamento de seu discurso. Realmente Pereira poderia ter salvado a vida de Jorginho. Mas não o fez. Cometeu um pequeno, mas essencial, deslize nas suas investigações, elegeu a estratégia errada, passou longe de identificar o assassino, que teve tempo suficiente para apagar todas as evidências do crime. Até mesmo isso virou notícia de jornal. Meu próprio irmão fez questão de revelar. Contou à imprensa que Pereira e toda nossa família mantinham contato intenso. Tudo debaixo dos panos, uma negociata, fora dos olhos das altas patentes. Pereira não teve sorte, porque além de perder o caso, em vista da pressão social que se abateu sobre ele, também perdeu o distintivo. Lucas e Fabiana foram para o exterior, como fazem os filhos de boa família nos momentos de crise. O projeto de Ana falhara, sua família se dissolvera, todos, de alguma maneira, morreram juntos com a criança, só que permaneceram vivas para sentir a dor. Talvez a única pessoa feliz fosse eu. Meu projeto sim se realizara. Sei que pode parecer egoísta, mas para um egocêntrico isso nada interessa. Sempre achei Jorginho uma criança besta e mimada. Aproveito para fazer mais uma confissão: tive ciúmes do moleque. Na verdade eu tinha ciúmes de tudo que se aproximava de Ana. Até mesmo da brisa do fim de tarde tocando leve o corpo docemente esquálido dela. Ana sempre foi fraca, e essa fraqueza me tirava o chão, me tirava a razão, que para mim, nunca valeu de nada mesmo, Ana sempre teve a capacidade – nenhuma outra palavra seria mais adequada – de me fazer perder a cabeça. Mas eu jamais deixei que isso transparecesse, aos olhos dos outros, sempre fui um cunhado respeitador, discreto, alguns diziam que eu era viado, outros diziam que era romântico apenas. Aos meus sobrinhos, inclusive Jorginho, fui útil até quando precisaram de mim, com meu irmão mantinha uma relação cortês, com Ana era mais fácil, porque uma dama merece todas as cortesias, até mesmo de quem não a desposou. Todo meu descontento, todos os meus passos na escuridão, tudo que devia, meus ódios e meus amores, eu mantinha em segredo. Jamais levantei uma suspeita sequer e tudo corria bem. Meu único erro foi sussurrar, num momento de êxtase, no ouvido de Ana, mais uma confissão: fui eu quem matou Jorginho. Quando ela arregalou os olhos, não tive dúvidas, o amor fraqueja, eu teria que matá-la também, para manter vivo meu segredo...