quarta-feira, novembro 05, 2008

Egoísmo em primeira pessoa


“naquele dia eu escrevi teus olhos
e a partir de então,
você passou a usá-los...”


EU me lembro exatamente o dia e como recebemos a notícia. Domingo. Manhã de 7 de fevereiro de 1999. A cidade já respirava confetes e serpentinas. Eu atendi quando Pereira ligou. Agradeci sem muitas palavras. Ao dar a notícia ao meu irmão, vi seu corpo desabar completamente sem forças no chão. Todos o foram amparar, menos eu. Confesso que petrifiquei ao presenciar aquela cena. Ana não sabia onde meter o choro, se entre as mãos ou nos braços. Lucas, o mais velho, tentava em vão despertar meu irmão do desmaio. Fabiana, a do meio, soltava um murmúrio de meu deus, minha nossa senhora, todos os santos. Ela não acreditava. Nem eu. Ninguém jamais aceitou a idéia de encontrar um corpo. Jorginho seria sempre uma criança, mesmo que apenas na lembrança distorcida de todos nós. A cena familiar logo virou espetáculo. A mídia televisiva e impressa enchia seus cofres de cifras com a tragédia alheia. Flashes e câmeras e textos não deixavam ninguém esquecer. Nem mesmo Che, o cão da família, sempre desamparado pelos cantos do quintal. Curiosamente, desde o desaparecimento de Jorginho, Che jamais me respeitara. Latia ao me avistar ainda de longe, impetuosamente. Mas logo recolhia o rabo entre as pernas quando eu me aproximava e seu instinto reconhecia minha superioridade. Mas verdade é que quem se fechou completamente para o mundo foi meu irmão, pirou, pode-se dizer. Eu até senti pena dele. O estranho é que a maneira de se enclausurar foi se expor ainda mais. À época dos sensacionalismos, ele era figura presente em todos os programas aos quais fosse convidado. Chorava copiosamente à frente das lentes. Sempre uma careta diferente estampada nos jornais. Suas palavras iam se tornando um gênero comum a muitas outras pessoas. Uma conta em solidariedade foi aberta num ano em que os banqueiros mais uma vez batiam todos os recordes de lucro. Ana não pôde suportar uma vida sem o caçula e fora morar na serra. Se por um lado, confesso mais uma vez, a meu irmão dei o desprezo desde o início, por outro me dediquei inteiramente à Ana. Afinal, ela era o amor da minha vida. Meu irmão não a merecia. Ele não podia tocá-la todas as noites, não com aquelas mãos que ele esfregava nas putas da orla. Em algumas oportunidades até em travecos. Eu mesmo o fotografei e enviei secretamente o conteúdo do flagrante pelo correio à Ana, atormentada, que mesmo assim, diante dessa vergonha, sustentava o relacionamento, porque não queria criar os filhos sem a figura paterna. Meu irmão não tinha esse direito. Vai ver recebeu o castigo que merecia ao perder o filho. Mas Ana não merecia esse desgosto de não ter mais o filho querido, em quem pudesse beijar feito uma boba, sem se preocupar com rugas ou pés de galinha. Porque para Jorginho, Ana era a mulher mais bonita do mundo. E realmente ela era. Eu mesmo a presenciei inúmeras vezes aos beijos com os filhos, jeito lindo de boba. Ela sempre pareceu não se importar com as minha espiadas, até sorria para mim às vezes. Ela teria sido muito mais feliz se tivesse me escolhido. Talvez não fosse necessária a morte de ninguém. Depois que Jorginho partiu, no entanto, ela não teve escolha. Criou-se um abismo entre ela e meu irmão. A incomunicabilidade dissolvera por completo o relacionamento. Enquanto um tentava perpetuar sua tristeza nos meios de comunicação, o outro só pensava em refletir o silêncio causado pela morte de Jorginho. Ela não teve escolha. Somente eu me dispusera a dedicar tamanha atenção. De um ponto de vista bastante egoísta, a morte de Jorginho me trouxera um benefício sem tamanho. Eu estava agora todo a disposição do meu amor, na exata condição em que aqueles que amam gostar de estar. Eu estava à mercê, feliz e à mercê. A tristeza constante de Ana, na verdade, em nada me incomodava, para ser mais sincero, eu me deleitava com aquela tristeza e a profunda dependência de um ombro, o meu em todas as ocasiões, pronto para afagos e socos, carícias ou mordidas, Ana tinha inúmeras formas de desabafar, e eu estava sempre à mercê. Do meu irmão, por muito tempo, só tive notícia pelas manchetes. Vez ou outra ele se abraçava a alguma causa em defesa dos pais que perderam seus filhos muito cedo e de maneira trágica. A última vez que nos vimos foi no enterro do menino. Uma verdadeira comoção nacional. Na ocasião, o dia até decidiu contribuir e, debaixo de um imenso temporal, uma procissão de guarda-chuvas seguiu em cortejo até o jazigo de Jorginho, as pessoas rezando pais-nossos e ave-marias, até hino nacional cantaram. O arcebispo fez uma extrema-unção tardia e simbólica do menino, provavelmente sem pecados àquela idade. Para quase todos, ele era um anjinho. Os holofotes das emissoras jorravam luz sobre o pequeno caixão sendo abaixado até o fundo da cova. Até mesmo uma associação de carpideiras ofereceu seus serviços, gratuitamente, tamanha a barbaridade do crime que levara a vida daquela criança. Ana, é claro, não foi àquele funeral folclórico. Eu tive que ir, não podia me demonstrar alheio ao fato, confesso de novo que até concedi uma entrevista, com rápidas e ensaiadas palavras. Meu irmão, ao ver o rosto de Pereira, não conteve seu ímpeto e disparou em sua direção, na frente das câmeras, enxergando cegamente num detetive o que ele acreditava ser a inoperância do estado. Durante os anos seguintes, defendeu com unhas e dentes a culpabilidade do estado na morte de seu filho. Mais uma vítima, segundo ele, do estado de calamidade pública que põe as pessoas umas contra as outras, feito animais selvagens, incapazes de discernimento. Porque seu filho – ele sempre chorava nessas horas – era apenas uma criança, incapaz até mesmo de defesa própria – ele ainda soluçava -, uma verdadeira covardia. Mas o fato é que Pereira jamais desgrudou do caso Jorginho. Esteve sempre decidido a fazer daquele o caso de sua vida. Meu irmão, embora o odiasse com todo o coração, não deixava de enxergar nele o fundamento de seu discurso. Realmente Pereira poderia ter salvado a vida de Jorginho. Mas não o fez. Cometeu um pequeno, mas essencial, deslize nas suas investigações, elegeu a estratégia errada, passou longe de identificar o assassino, que teve tempo suficiente para apagar todas as evidências do crime. Até mesmo isso virou notícia de jornal. Meu próprio irmão fez questão de revelar. Contou à imprensa que Pereira e toda nossa família mantinham contato intenso. Tudo debaixo dos panos, uma negociata, fora dos olhos das altas patentes. Pereira não teve sorte, porque além de perder o caso, em vista da pressão social que se abateu sobre ele, também perdeu o distintivo. Lucas e Fabiana foram para o exterior, como fazem os filhos de boa família nos momentos de crise. O projeto de Ana falhara, sua família se dissolvera, todos, de alguma maneira, morreram juntos com a criança, só que permaneceram vivas para sentir a dor. Talvez a única pessoa feliz fosse eu. Meu projeto sim se realizara. Sei que pode parecer egoísta, mas para um egocêntrico isso nada interessa. Sempre achei Jorginho uma criança besta e mimada. Aproveito para fazer mais uma confissão: tive ciúmes do moleque. Na verdade eu tinha ciúmes de tudo que se aproximava de Ana. Até mesmo da brisa do fim de tarde tocando leve o corpo docemente esquálido dela. Ana sempre foi fraca, e essa fraqueza me tirava o chão, me tirava a razão, que para mim, nunca valeu de nada mesmo, Ana sempre teve a capacidade – nenhuma outra palavra seria mais adequada – de me fazer perder a cabeça. Mas eu jamais deixei que isso transparecesse, aos olhos dos outros, sempre fui um cunhado respeitador, discreto, alguns diziam que eu era viado, outros diziam que era romântico apenas. Aos meus sobrinhos, inclusive Jorginho, fui útil até quando precisaram de mim, com meu irmão mantinha uma relação cortês, com Ana era mais fácil, porque uma dama merece todas as cortesias, até mesmo de quem não a desposou. Todo meu descontento, todos os meus passos na escuridão, tudo que devia, meus ódios e meus amores, eu mantinha em segredo. Jamais levantei uma suspeita sequer e tudo corria bem. Meu único erro foi sussurrar, num momento de êxtase, no ouvido de Ana, mais uma confissão: fui eu quem matou Jorginho. Quando ela arregalou os olhos, não tive dúvidas, o amor fraqueja, eu teria que matá-la também, para manter vivo meu segredo...

terça-feira, maio 20, 2008

Bem, há muito tempo não atualizo este blog, por essa razão, vou disponibilizar a quem tiver interesse na leitura dois textos: o primeiro é do segundo livro (O autor sua dor); já o segundo é o quinto conto do novo livro que está em processo ainda. Embora apresentem estratégias narrativas distintas, guardam certa relação na força dramática de seus enredos. Espero que gostem!

Nem lágrimas escorrerão de seus olhos

Desceu a Pacheco Junior e virou à esquerda na Lenor, rua que achava grande e muito sinuosa embora tivesse apenas uma curva. Mas nisso Ele só acreditava durante a volta. Na ida seus pés meio que flutuavam sobre o chão de pedras quadradas. Tinha um estado de espírito que muitos, porém não todos, chamariam de bom. Ganhou a Francisco Portela, aquela avenida de luas amarelas pregadas nos postes, margeada por muros rabiscados de nomes muitas vezes incompreensíveis. Seu rumo era desconhecido, não inesperado. Algo difícil de explicar. No ônibus via flashes multicoloridos tão velozes quanto efêmeros. Avistou de longe, já descido da condução, o bar e uns pontinhos dançantes que julgou serem pessoas. Sacou do bolso da camisa um cigarro. Acendeu. Deu uma longa tragada, como se quisesse tomar um fôlego. Bufou um pouco e partiu deixando um leve rastro. Uma luz vermelha que se projetava de cima duma estrutura de ferro era a senha, podia atravessar a avenida, que àquela altura já mudara de nome. Os pontinhos, antes longínquos, iam tomando forma ao tempo dos seus passos. Levantou a mão algumas vezes, acenou com a cabeça noutras, mas foram seus olhos os que fizeram o contato mais interessante. Disso cuidaria depois. Uma vontade devia ser saciada antes de qualquer outra coisa. Pediu uma cerveja e deixou-se beber pelo líquido alcoólico envolvente. Um barulho polifônico preenchia o ambiente, vozes, muitas vozes se cruzando, dando crias. Sentiu uma ardência nas costas, pela forma grosseira que as pessoas daquele lugar tinham em se cumprimentar. J. estava parado atrás Dele, com um sorriso bonachão nada condizente com a bofetada. J. começou a dizer, você demorou muito, Ele fez silêncio. O que J. disse depois não se sabe, porque os decibéis dos alto-falantes eram imperiosos, imperativos, imperiais, plagiados de Joyce. Isso, também, pouco importava naquele instante. A terceira cerveja Dele se fora, junto de mais cinco cigarros e alguns minutos de sua breve vida. Mas sobre isso, claro, sua consciência não o permitiu refletir. Não naquela hora. Seus olhos eram a única – a única, não a mais segura – forma de captação. E justo eles, que já o traíram em tantas ocasiões. A célula fotográfica da retina apontara para muitas poses, mas revelara poucas, das quais aquela mulher fora a mais preciosa. Gostosa, o termo mais preciso e precioso mais uma vez, todas as vezes, sempre. Quem sabe? Olhos, forma de captação e de comunicação, enigma averbal. Fonte de dúvidas e falsas certezas. Ele já não podia lutar contra isso e se deixava penetrar pela imagem daquela mulher. O inverso da lógica biológica. Penetrado e ocupado por dentro, a mulher, enorme, mas que mesmo assim penetrou pelo pequeno orifício ocular. Onde estaria J.? Em algum lugar, como todo mundo. O que importava é que Ele estava ali, ela idem, os dois juntos, eclipse, um na frente do outro, a luz e a sombra, e ela ainda dentro dele. Só restaram os dois, mais ninguém. Pra quê mais alguém? Que se danassem. Eram os dois, o necessário, o suficiente, tudo. Ele ouvia a voz dela, mais alto que qualquer outro som, eu quero foder com você, sim, Ele podia ouvir. A resposta? Uma ação, a aproximação, o contato, a rejeição. Então Ele se recolheu à enésima cerveja e ao enésimo cigarro, mais morto que antes. Ilusão? O barulho polifônico retorna, as pessoas, J., tudo incomoda. Ele se recorda de ir embora, sentar num banco, numa escada, pensar, paga, sai, olha a mulher uma penúltima vez. Se distancia do bar e as pessoas vão retomando a sua forma de pontinhos. Ele senta, no meio-fio, ainda olha a vista longínqua. Os pontinhos pululam, crescem, brotam. A mente insana ocupa o tempo, os braços, as pernas, os instintos. Ele fuma mais cigarro. Por que desceu a Pacheco Junior?


Não desceu a Pacheco Junior. Seu endereço era já outro. Subiu a íngrime Adino Xavier. Seguiu à esquerda na Rua da Caminhada. Alguns passos depois, portanto nem uma caminhada inteira, e mais uma vez à esquerda, estava na Maria Rita. Em alguma rua daquele logradouro seria a festa. Mas não lhe saia da cabeça a sua excomunhão da igreja católica. Não de acordo com doutrinas, imposições hipócritas, decidiu semear a discórdia no seio da religião. E tão nervoso foi seu intuito que se viu diante da forca, porém feliz, uma vez que ia ser des-batizado, livre outra vez, criatura, ou criador da própria consciência. Nas celebrações se exaltava, pensava nisso enquanto ia a caminho da festa na Maria Rita. Vociferava suas palavras contra o peito frágil dos fiéis. Estava possuído, muitos diziam, dominado, ou então, como você mesmo preferia acreditar, totalmente solto, liberto, a luz a sua frente, e você todo sorrisos. Você não sofreu, isso não, riu, riu loucamente da sua expulsão, do vazio que ficou depois disso, dessa paz que sempre você almejou. Ia para a festa assim, desimpedido, acima de tudo, vivo, encimado por uma luz natural, talvez assim você não o quisesse, mas ia. Traiu a igreja para ser fiel a si mesmo, e a mais ninguém. Você negou a si mesmo a volúpia da religião, o orgasmo santo e sagrado, simbolicamente sangrado. Negou a carne forma de trigo, que muitas vezes, contrariando orientações, você mastigou, cravou os dentes, não a deixou se dissolver entre o dorso da língua e o céu da boca, não, não mesmo, você sempre mastigava o corpo, canibalizava a eucaristia. Talvez eles até tivessem razão, talvez você estivesse de fato possuído, endemoniado, uma fera indomável tentando transpor as rijas barras de ferro da cela que lhe impunham, acorrentado no pênis, na boca, nas zonas todas do seu corpo, acorrentado no desejo, no tesão, a cabeça, a mente, tudo acorrentado. E dos meus olhos brotava a chama do rancor, chama molhada, água fervente, salgada, acre, um latido feroz saído dos olhos meus, perscrutando as almas vazias e quase transparentes de seus agressores, olhos viscerais, olhos de lâmina cortante. Passei a mão na chave em direção ao andar de cima. Já iam dentro das calças o cigarro e o isqueiro. Subi os degraus da escada de dois em dois e me perdi no anonimato.


“O homem é como os rinocerontes, isso, os rinocerontes, ele ataca primeiro e pensa depois. Ele primeiro sacia essa necessidade instintiva e depois pensa, o que já não adianta de nada. É o fato que constrói teoria, disso não se tem dúvidas, a teoria que é um pensamento, também vem depois. Agora é fácil pensar, explicar, procurar razões e justificativas, mas na hora, se ataca, e tão somente.”

“Maquia direitinho, ela tem que ficar linda, deslumbrante, uma princesa. Olha aqui, aqui em baixo dos olhos, põe mais pó-de-ruge aqui, vai. Assim, assim mesmo que tá linda, lindíssima. Não esquece o batom dela, viu? Sem batom ela é a mesma coisa que comida sem tempero. Ai, ai, ai. Tá ficando linda, eles vão te adorar, querida.”

“Na hora, a vontade te controla como se fosse ela a única e imperiosa senhora. Essa irmã gêmea da loucura, esse passo anterior ao insensato, essa forma dúbia do egoísmo, não mais que isso. Ou simplesmente isso.”

“E essa sombra aqui, você pirou? Mais escuro, por favor! Quero que os olhos dela tragam a escuridão, quero que os rapazes se percam na neblina do olhar dela, isso, isso, capricha. Parece uma modelo de passarela, não parece?”

“O desejo maior do homem é o dinheiro, tudo para o homem se resume a dinheiro. Dois pecados, um é o de resumir tudo, dois é o de acabar resumindo a si mesmo. E no entanto poucos se espantam com essa banal verdade. Falar é fácil, viver que é foda.”
“Destrava essa cara, querida! Assim com essa careta não vai adiantar muito a maquiagem mesmo. Dá um sorriso, vai, dá um sorriso que eu quero ver esses dentes. Mas se quiser pode ficar assim com cara de nervosinha, eles vão adorar você de qualquer jeito.”

“Outro desejo do bicho homem é organizar o conhecimento, uma triste ilusão, porque o espírito é sempre prático e, acima de tudo, imediato. Sede de compreensão é uma doce utopia que dá sentido à vida humana. A única pergunta que se pode fazer é: o que fazer com o incompreensível?”

“Cadê aquele sutiã com enchimento que a gente comprou? Não tô achando. Não tá aqui nessa sacola. Cadê a porra do sutiã? Sem peito grande não tem graça, né? A moçada gosta mesmo é de peito bem grande. A galera gosta de carne ou de imagem. Você tá ficando uma boneca!”

“No início era o verbo, e o verbo era tudo, e o verbo era deus, e dele tudo nasceu, e dele tudo há de nascer. O verbo. Mais um desejo. É melhor ler sobre aquilo em que se acredita. Desse jeito é menos vergonhoso.”

“Uma belezura que tá ficando, uma belezura! Coisa mais fofa, gente! Linda demais! Tá quase chegando a hora, tá? Você vai ver que espetáculo que vai ser. Ficou ótimo esse sutiã nela. Assim que eu queria, bastante peito!”

“Sempre se explica a própria dor pela dor alheia. Eis o critério.”

“Ta pronta! Aiiiiii! Nossa, como ficou linda! Vamos apresentá-la!”

“Mas no fim de tudo, se é que é possível haver fim, fica a agradável lembrança do prazer que tive”


Ela não podia me renegar. Qual o porquê daquilo? Eu não estava errado, de maneira alguma. O que mais eu podia representar para ela naquele instante? A julgar pelo olhar... eu ouvi bem ela me dizendo aquilo. Era ela quem dizia, e dizia a mim, com seus olhos, não dizia? Ora, claro que sim. Eu atendi. O que mais podia fazer se não atender aquele chamado? Eram suplicantes os acordes que se desprendiam daquelas pupilas absurdamente dilatadas. Era o Prazer em forma de mulher, convidativa, serpente da sedução, feminifelina. Agarrei-a pelos pulsos com força, numa demonstração da minha condescendência. No que ela titubeou, imprimi mais força aos meus dedos e mais afirmação nas minhas expressões. Um ui silvado ecoou de dentro dela, quase um uivo de gozo. Meus pouquíssimos pelos do corpo se assanharam, eretos, tremulantes, sensíveis. Decidi que ela me queria no controle. Éramos animais e assim devíamos nos portar, feito animais, os animais próprios na loucura e insana tendência do instinto. Panos rasgados, pele arranhada, mordidas, dentadas, músculos tensos, suor e cansaço, dor e entrega, sussurros gemidos gritos, eu no controle.


Eu queria, sóbrio, tranqüilo, tocar o rosto dela, macio, suave, eu queria enroscar feito cobra naquele corpo, sem apertar, na dose exata, ouvir suspiros, pequenos gemidos, tremor de pernas, eu queria que tivesse sido assim, você nem vai acreditar, mas eu queria que tivesse sido assim, ser beijado com um beijo úmido, tocar a nuca suada com dedo não hesitante, se eu pudesse voltar, te juro, eu voltaria, talvez nem sairia de casa, onde eu morava mesmo?, lembro pouco, foi tudo tão rápido, ela estava lá deitada, meio de lado, um pedaço da língua pra fora, os olhos, ai, aqueles olhos, arregalados, e já não olhavam mais pra mim, não olhavam nada, eram olhos que não eram olhos, eu queria mesmo era ter viajado com ela, isso eu senti logo naquela noite, ela era loira, falsa, é verdade, mas mesmo assim loira, um metro e oitenta talvez, você já se apaixonou por alguém?, ah, isso não é importante, você não entende mesmo, e eu entendi tudo errado, sempre entendo tudo errado, por isso fiz o que fiz, eu nunca quis forçar ninguém a nada, todas as noites eu sonho com isso, ela gritava, mas eu não ouvia, sei que ela gritava mesmo sem poder ouvir, se eu pudesse, meu deus, se eu pudesse... agora eu estou aqui, querendo o impossível, voltar no tempo, mas o engraçado é que eu não consigo chorar, devo ser doente, você não acha?, desde que tudo aconteceu, ninguém veio me ver, minha mãe me mandou uma carta me dizendo que isso é castigo, eu já nem sei mais, o pessoal vai me matar, não vai?, por isso essa roupa ridícula, não é mesmo?, eu não ligo, não ligo mesmo, nem mesmo consigo chorar, acho que confundi as coisas, mas não sou monstro nenhum como você me disse... pelo menos eu não vou mais ter que sonhar com isso toda noite.

Mas já é tarde

“primeiro tentou poema
tirar imagem
dela parada serena”

A manhã é quase uma extensão da noite. No céu, cinza-escuro, uma grossa camada de nuvens esconde o sol. Pode-se até pensar, dependendo de quem e de seu estado de espírito, que o sol nem mesmo existe. O cenário lembra aqueles filmes que tentam revelar tão somente na imagem uma emoção qualquer do personagem. Como se o aspecto do cenário pudesse resumir o aspecto do homem. Dessa vez o dia não começa com nenhuma onomatopéia emitida por uma parafernália made in China que funciona a pilhas. Sérgio desperta é com o som da chuva se precipitando sobre as telhas francesas, mas ainda conserva os olhos fechados. Ele gosta desse chiado, dessa pequena sinfonia que se produz toda vez que chove, muito embora se irrite com as intermináveis goteiras que surgem em tal ocasião. Lá fora está tudo úmido. A posição dos ponteiros no relógio indica que ainda é bem cedo. A casa alugada onde Sérgio mora é velha, uns setenta anos ou mais, é parte de uma antiga vila operária, de uma época em que havia prosperidade, como costuma dizer Dona Bia, a dona da casa. O passado de todos, estranhamente, é sempre glorioso. Pelo postigo, improvisado de papelão, uma pequena fenda permiti que uma fina e tímida luz, por conta da cor daquele céu, atinja em cheio as pálpebras ainda cerradas de Sérgio. Ele prontamente contorce o rosto e logo depois todo o corpo, está se libertando de vez da sua pequena morte. É a primeira vez em muitos dias que Sérgio acorda bem e isso lhe provoca, de início, uma surpresa, talvez hoje seja um dia especial. E ele vai aproveitar essa atmosfera para colocar as coisas em ordem, muito embora aprecie bastante a desordem. Precisa terminar um poema do qual não consegue sair faz tempo. Hoje, se deus quiser, ainda que seja ateu, ele vai conseguir terminar o texto, alguma coisa vai ser encerrada hoje, é essa a sensação que se apossa de Sérgio, a de que existe um fim e de que ele vai acontecer hoje. Mesmo com esse céu, completamente cinza-escuro. Mas não sem uma xícara de café antes. Na verdade um copo. Sérgio acha besteira essa solenidade de ter de usar xícaras para tomar café, bem como se sentar à mesa, dar bom dia, desejar boa sorte e toda polidez social do gênero. Ele deseja apenas saciar sua sede do conteúdo, portanto não lhe interessa o continente. Pelo quarto algumas peças de roupas estão amarrotadamente confortáveis no chão, Sérgio gosta dessa aparente desordem, é como se aquilo pudesse ser uma pequena alegoria de sua discordância com o mundo, com a pontualidade que as instituições tentam impor aos indivíduos. Ele não pode começar a pensar nisso tudo, senão um imenso buraco se abrirá em suas entranhas, então ele voltará a praguejar, como costuma fazer, a sua própria fortuna, como se fosse autoflagelo, ou algo do tipo. Nesta manhã Sérgio se sente bem, ele ainda sabe como conservar estados emotivos, é preciso conhece-los, vivenciá-los apenas uma vez, depois da experiência fica simples camuflar. Será isso? Será camuflagem, simulação pura essa tranqüilidade que se veste suave em Sérgio, como se fosse o sereno, que umedece aos poucos os cravos do jardim? É curioso que da cabeça de Sérgio não tenham saltado as suas angústias, elas estão todas lá, no seu lugar de direito e posse, mas não fazem tanto barulho hoje, certamente um dia especial, Sérgio tem novamente essa sensação. Pensamento e ato podem tomar rumos distintos em diversas ocasiões, a mente é absorvida por suas abstrações enquanto as mãos e pés dançam por um palco conhecido, executam movimentos programados, a ação em certas circunstâncias parece alheia ao pensamento. Por essa razão, essa estranheza humana, o café já está pronto, servido num copo desses que são usados em bar, tudo mecanicamente, ele já desce quente e doce pela garganta de Sérgio, deixa seu rastro como um pequeno incêndio, um calor leve mas suficiente para provocar uma desagradável sensação de ter queimado todas as cordas vocais, Sérgio faz uma careta iludido de que isso lhe traga algum alívio. Na verdade ele foi displicente ao dar uma golada tão grande em uma bebida fumegante como o café recém saído do fogão. Para completar a pequena tragédia do início do dia, o copo, largado com excessiva força sobre a pia da cozinha, em vista da queda, sofre uma fissura suficiente para fazer trincar o vidro inteiro. Alguns cacos se arremessam ao chão, parecem cheios de uma inconsciente intenção de ferir alguém. Enquanto ainda faz caretas inúteis, Sérgio, distraído do resto de seu corpo, absorvido somente pela queimadura de língua e garganta, pisa em um dos cacos inconscientemente mal intencionados. Agora são duas dores físicas: calor excessivo na boca e sangue quente jorrando da planta dos pés. Lá fora, a mesma chuva que acordou Sérgio continua a cair, então ele, um pouco manco, por causa do corte, abre as duas folhas da janela, se debruça, depois gira o corpo em cento e oitenta graus, fecha os olhos para não se importunar com as gotas, o céu, antes cinza-escuro, fica totalmente negro, ele arreganha a boca e deixa a água da chuva preenche-la, na verdade água da calha, cheia de sedimentos, folhagem, lama e lodo, até mesmo lembranças, uma temperatura é substituída por outra, a boca, a garganta (porque a chuva molhou até mesmo o peito que incendiava ainda com o café), essa parte estranha do corpo já não sente incômodo algum, com exceção dos detritos e lembranças que agora quase sufocam Sérgio, ainda estendido sobre o para-peito da janela. Ele se livra dessa posição e também de todo conteúdo novo, agora velho, e retorna para a atmosfera da casa. Numa cortina velha e surrada Sérgio faz sua higiene pessoal, depois de secar rosto e mãos, observa a sujeira de seu corpo transportada para a cortina, ele gosta dessa desordem, da cortina encardida, das roupas amarrotadas que descansam no chão, sente certo prazer na maneira como vai tecendo o enredo de sua própria vida, uma desordem total, o único pecado de Sérgio é ignorar que até mesmo a indisciplina é uma forma de disciplina. Talvez ele não ignore totalmente, talvez apenas simule essa ignorância, do contrário, todo aquele mundo, toda aquela teia em que estava envolvido, tudo se desmoronaria feito uma placa de gelo derretendo ao sol. Penetrar a cabeça de Sérgio e descobrir se tais fundamentos são válidos é apenas um ilusão, embora a hipótese seja sempre válida. Mas para Sérgio, toda essa filosofia de garagem não interessa neste momento, seu pé sangra quente, não tanto quanto o café que lhe queimara a língua, e na verdade o calor ameno do sangue jorrando nem incomoda, a dor é a madrasta, é a chaga, a ferida aberta no corpo, na planta dos pés. Só agora Sérgio nota que por toda casa, vestígios de seu sangue decoram o assoalho, alguma mudas de roupa, alguns papéis, seis ou sete poemas, um conto não terminado, o primeiro romance, fotografias, um filtro de cigarro, uma calcinha órfã, Fernando Pessoa, quase tudo na casa está tingido de vermelho. Diante dessa circunstância, dentro de Sérgio se abre um vão, ele acaba de estabelecer um pacto de sangue com sua casa, com tudo que há nela, com seus textos, com seu passado em imagens policromáticas, com seu autor preferido, com sua segunda pele, a dor não importa mais, é um elemento acessório, há mais que sangrar, fazer do sangue a urina de um cachorro que deseja demarcar seu território, então Sérgio toma em suas mãos o texto que deseja terminar hoje, é um poema, ele acha, começa a ler em voz alta (ela é branca / preta / ela é todas as cores / do céu / do mar / do sonho / ela é doce / é acre / ela é todos os gostos / do tempo / do vento / de agosto / ela sabe francês / mandarim / javanês / ela é todas as línguas / toda língua / língua / ela é a canção que me toca / ela é a manhã nublada de sábado na cama / é quem diz que me ama / ela é um verso escondido na dor de um poeta / a caligrafia enferma / ela é o perfume que exala das flores / ela é afrodite / deusa dos amores / ela é o abraço apertado da despedida / ela é o restinho que me sobra de vida / ela é minha noite em claro lendo pessoa / ela é o verão que começa chuvoso / ela é a nona / é as doze badaladas da meia-noite / ela é a lágrima que escorre do meu olho / a tinta fresca borrada na tela / a voz rouca de um cantor famoso / o segredo que a criança não conta / ela é o acidente de percurso do meu destino rasurado / é a folha em branco / meu casaco manchado / ela é o sabor de setembro / as águas de março / calor de janeiro / o último cigarro do maço / ela é o caminho perdido / meu abril despedaçado / a página virada de um livro / a palavra sem significado / ela é a angústia cortante dos dias / é meu eterno feriado / ela é o movimento delicado da relva / o ato improvisado de um teatro / o palco / o pano abaixado / cenário revelado / é o desvario dos loucos e alucinados / minha droga / minha heroína / ela é corpo e cansaço). O poema está terminado e o dia mal começou, especial mesmo, agora não falta mais uma palavra, a mancha de sangue é o ponto final do poema, Sérgio constata que todo poema deveria ser encerrado com a mácula do poeta, como se sugerisse nas palavras uma hemorragia da alma de seu autor. Ela é Fabiana, pensa Sérgio, que sente ter retirado de suas costas o peso imenso de terminar aquele texto, algum dia será lido numa ocasião destinada a leitura de versos, vão maldizer sua obra, alfinetar com comentários depreciativos, sempre fazem isso, zombam do outro para que aos olhos de todos, pareçam melhores, sejam eles os amados e idolatrados, o assunto das rodinhas. Sérgio não discorda de seus críticos, ela sabe que escreve mal, ele é um leitor voraz, sabe a diferença entre uma palavra ordinária e uma imagem carregada de sentidos, ele não quer ser fulano ou beltrano, nada disso atrai a atenção de Sérgio, sua única diversão é se fazer daquele rapaz, que se encaminha até a casa de sua namoradinha, e, no meio do trajeto, esbarra numa flor simples, nada demais, a retira de seu canteiro, e retoma o caminho, ao chegar ao seu destino, ele é recebido pela mocinha, que aceita, estupefata, cheia de amor e felicidade, aquela simples flor, que nunca se pretendeu uma orquídea ou coisa do tipo, Sérgio quer apenas que seu texto lhe mostre um caminho que leve a esse amor e a essa felicidade, a simples flor é a palavra ordinária de Sérgio, que nunca se pretendeu Shakespeare ou coisa do tipo. Aquele poema é só da Fabiana e somente sua opinião importa, somente o arfar de seu peito quando decifra cada significado íntimo dos versos, cada piada sem graça transformada num registro pessoal da poesia, somente os olhos brilhantes e ofuscados pela verdade daquele texto que só ela será capaz de desvendar, e guardará para si, em segredo absoluto, e vai sonhar nas noites de sono tranqüilo, e vai pensar em claro nas noites mal dormidas, é Fabiana quem importa. Essa tranqüilidade que se apossa e Sérgio inunda a casa de paz, tudo se encaminha perfeitamente bem, é realmente um dia especial, que vai ficar arquivado sob todos os cuidados na lembrança de Sérgio, o texto, a desordem, a chuva lá fora, o sorriso imaginário de Fabiana. Já o café pelando, o copo quebrado, o corte na planta dos pés, para tudo isso Sérgio vai usar uma borracha especial, vai apagar, editar a manhã, para que ela se aproxime de uma perfeição parnasiana até. Ainda há o dia inteiro pela frente e já tanta coisa agradável aconteceu. Sérgio vai aproveitar o clima para resolver tudo com o Che quando ele aparecer, dizer que não pretende mais levar a frente essa história, que ama a Fabiana e que não acha justo fazê-la sofrer tanto assim, ela não merece a sua infidelidade, vai terminar aquela aventura com Che em nome do amor de Fabiana. Na certa Che vai entender, ele é um espírito livre, seu corpo está cima de tudo, é um hedonista nato, vai aceitar não ter mais Sérgio na conta de seus relacionamentos sexuais, ele tem dormido pouco em casa, e afinal de contas, não foi Sérgio o seu melhor amante, Che morre mesmo é por Jorge, se tortura com seu ciúme doentio, é por causa de Jorge que Che enfia pó no corpo pelo nariz, se embriaga, é por Jorge que Che já tentou suicídio. Apesar de tudo isso Sérgio não tem tanta certeza quanto à aceitação de Che, não tem, precisa tentar assim mesmo, está decidido de que deve se dedicar inteiramente à Fabiana, antes que seja tarde demais. Quando Che voltar, Sérgio vai dizer tudo abertamente na cara dele, vão discutir quem fica com a casa, os assuntos burocráticos, enfim. Sérgio deseja ficar, a desordem, seu orgulho, é mais dele do que do Che, que quase não fica em casa, e agora até rastros do sangue de Sérgio mancham o assoalho. Ele vai preparar tudo, um dia vai receber Fabiana em casa, ajudando com as malas pesadas, despejando-as todas num canto qualquer, Sérgio vai encher Fabiana de beijos de saliva fria, de abraços de afeto quente, vai fazer tudo isso, dar abrigo e segurança àquela mulher, basta aguardar com paciência os minutos, as horas, os dias, se necessário; em resumo, basta aguardar. Então Sérgio se põe a pensar na sua história de vida, na tragédia que marcara sua existência, lembra do dia em que Lucas, seu pai, colocou a mulher e os dois filhos no olho da rua, sua mãe dirigia o carro quase afogada em lágrimas, Sérgio era pequeno e chorava apenas por ver Ana chorando, porque não compreendia bem a dor de sua mãe, amada mãe, ele era incapaz de saber exatamente, mas crescia dentro dele uma raiva aguda do pai, desconfiava muito da traição de seu pai e sentia por ele um ódio mortal. Eva, sua irmã, parecia uma estátua de bronze, pois nunca manifestou qualquer sentimento quanto ao episódio, o silêncio se expressava de maneira absurdamente voraz, engolia tudo a sua volta. Tão logo descobriu o poder que sua boceta tinha sobre os homens, sumiu no mundo, Sérgio nunca mais soube dela. Não demorou muito para que Ana fosse consumida pela depressão até ser internada em clínica psiquiátrica. Então Sérgio encontrou Che, ou melhor, Che encontrou Sérgio, um garoto solitário, vadio, necessitado de uma mão amiga, ou mais que amiga, como foi o caso. Mas isso tem de acabar, Sérgio quer Fabiana e Che vai fazer parte do passado, e Sérgio pode até usar aquela borracha especial se quiser. Não parecem ter sido muito bons os últimos pensamentos que perpassaram a mente de Sérgio. Ele decide então tratar sua ferida aberta, o corte na planta dos pés, já não há mais sangramento, ele chega a desconfiar, por um momento, que seu corpo parou de produzir sangue, a carne está tão viva, a fenda ainda está tão grande que é de se espantar que não sangre mais. Alguma coisa incompreensível para Sérgio está represando o sangue, impedindo-o de vazar por aquela ferida. Isso afinal, não pode provocar pânico em Sérgio, pelo contrário, não há mais necessidade de tratamento algum, a ferida se fechará por efeito espontâneo e natural, é só uma questão de esperar, esperar a cura, esperar Che, alguma coisa vai ser encerrada hoje, é essa a sensação que se apossa de Sérgio, romper o pacto, esperar Fabiana, ela é um verso escondido na dor de um poeta, refazer o laço. Sobre uma das almofadas que há pela casa, uma edição intocada do jornal de ontem descansa sossegada, até então, já que Sérgio decidi evadir-se numa leitura fácil, não está muito disposto para literatura tcheca ou qualquer coisa do tipo, já terminou o texto que queria, o dia transcorre razoavelmente bem e além disso não quer se deixar dominar pelo estado de dúvidas que se anunciava. Por isso vai ler o jornal. Ele se distrai, agora esparramado sobre um velho sofá, com as manchetes escritas em duplo sentido clicherizado e as piadas baratas que com freqüência tomam a maior parte da página. O estado enfrenta uma epidemia que põe a população em pânico, depois de exterminarem os mosquitos, vão precisar de mutirões de psicanalistas para atender aos afetados psicologicamente por essa onda de pânico. Isso, claro, não consta na chamada da matéria, é Sérgio, um pouco vaidoso, quem reflete sobre o problema. Num outro quadrante da página, uma mulher seminua, noutro, o destaque é uma reportagem sobre roubos de automóveis, neste país, rouba-se um a cada três minutos; matéria encomendada por seguradora ou por empresa de rastreamento de veículos. A pessoa lê, entra em pânico de novo, igual ao caso do mosquito, e assina uma apólice ou instala um gps no carro. Isso também é produto da reflexão de Sérgio que, mais vaidoso ainda, se sente acima da maioria das pessoas, por sua capacidade de não se deixar enganar, é isso que ele pensa. O fetiche contemporâneo se constrói sobre o medo. A preguiça do dia tem um certo efeito sobre Sérgio, que afundado ali naquele sofá, tenta encontrar nas palavras de um jornal qualquer o fundamento daquilo que ele julga ser seu dom, ele sim vê além da superfície, pelo menos é assim que pensa, os anos ao lado da literatura, as páginas e páginas de metáforas, de imagens, de contigüidades propositais, até mesmo sua própria ficção, seus poemas, pequenas bolhas de desabafo voando pelo ar até perder densidade e estourar. As mãos de Sérgio fazem um movimento desajeitado, abrindo assim o jornal em duas partes, o pensamento passeia rápido sobre a imagem de Fabiana e Sérgio esboça um pequeno e tímido sorriso. Vai ser hoje, com esse céu cinza-escuro, que confunde dia e noite, engraçado um dia assim tão especial acontecendo em baixo desse céu tão carregado. Os olhos de Sérgio deslizam sobre as palavras, sobre as reportagens, aquele que não tem preocupações na vida deve abrir um jornal, ali existem aos montes, do vigésimo segundo andar de um bairro de luxo alguém saltou para virar patê de cor avermelhada. Não mais dono de si, por um instante, Sérgio experimenta a sensação de despencar vinte e dois andares, o vento rápido demais, o coração rápido demais, tudo rápido demais, a morte tem pressa, o coração quase salta à boca de Sérgio e seus pulmões aceleram a respiração, ele sobrevive à sua experiência da sensação. Sérgio sempre vê além da superfície, ele interpreta aquele mal-estar, aquela pequena encenação da morte, como um sinal, um aviso. Só não sabe ainda de onde vem o sinal, nem o que ele quer dizer, mas está absolutamente convencido de que é um aviso. Ele, no entanto, não pretende se ocupar dessa questão e mostra que é dono de si sim senhor ao voltar sua atenção para o jornal do dia anterior. Na seção das notícias internacionais, Sérgio alivia seus nervos, está tudo acontecendo (se é que está acontecendo mesmo) longe demais, fica mais fácil ser alheio a tal distância, a China e seu comunismo, sem partilha, a Europa e seus castelos, sem reis ou rainhas, os Estados Unidos e seu consumismo, no sense, a África e suas crianças, sem infância, o Oriente Médio e seus homens-bomba, sem medo ou perspectiva. Sérgio gasta longos minutos fazendo pontes-aéreas pelas notícias internacionais, tudo corre bem outra vez, a tranqüilidade é enfim restaurada, o sossego da leitura frente a uma foto de monges sendo espancados soa, aos ouvidos de Sérgio, como uma antítese; essa veia literária que não o abandona, esse dom que ele acredita ter, capaz de enxergar além da superfície, a luta pela independência do Tibet, sob a lente dos jornais, é pura literatura, quase uma epopéia, Dalai Lama, o libertador do espírito e da carne; para Sérgio, o que ocorre do outro lado do mundo (na verdade até na casa do vizinho) não passa de ficção, ele entende como a vida é transformada em páginas que podem ou não ser lidas, cada pessoa codificada em letras e significados. Sérgio chega a pensar que poderia escrever crônicas em jornais, assim conseguiria sustentar Fabiana, comprar-lhe rosas quando voltasse da redação, uma boa garrafa de vinho, uma jóia cara, tudo enfim, mas nessa projeção utópica, Sérgio, que se considera acima dos demais ou aquele que enxerga além da superfície, não percebe que rosas, vinho e jóia são três representações simbólicas de um amor concebido nos estúdios do cinema hollywoodiano. Todos cometem falhas, todos titubeiam, inclusive Sérgio. Além disso, como Sérgio poderia se sentar, numa possível reunião de pauta, ao lado do repórter que ele tanto despreza? O autor, segundo o próprio Sérgio, da ficção cotidiana que aprisiona as pessoas. Até mesmo Sérgio está sujeito às contradições. Fora toda essa reflexão inútil, as páginas do jornal farfalham sob a ação das mãos de Sérgio. Tudo retoma seu caminho, os olhos de Sérgio passeiam vertiginosamente por uma página exclusiva sobre acidentes de trânsito, morre cada vez mais gente no trânsito. Muito estranhamente, Sérgio é invadido por imagens, como se sua mente fosse uma pequena, mas poderosa película, é uma cena que se desenrola meio que saída de algum projetor, ele ainda segura o jornal, seus olhos ainda se afundam nos textos, mas seu semblante revela um ar tenso, são as imagens que se projetam não se sabe de onde, às quais Sérgio assiste não sabe por que, nelas aparece um rapaz viril, jovem - um orgulho para sua raça, diria Woody Allen - no máximo vinte anos de vida, ele está num festa, cercado de muitas pessoas, todos sorriem muito, parecem felizes, absurdamente felizes, seus dentes ficam tanto tempo à mostra ao ponto de se ter a impressão de que já nasceram todos sorrindo, que aquela é a expressão permanente de seus rostos, não se pode compreender uma vírgula de seus assuntos, talvez o motivo de toda aquela felicidade; alguns dos convivas, dentre os quais o rapaz viril, parecem tão extasiados que nem mesmo se sustentam de pé, caem no chão como se tudo aquilo fosse uma brincadeira combinada antes por eles, nessa cena são todos muito belos, rapazes e moças, se pode sentir o frescor de suas intimidades, os poros exalando hormônios, a disposição e o instinto falando mais alto que o bom senso, tudo continua até muito tarde, a cena, as imagens, então a festa acaba, o rapaz viril parte em seu carro turbinado, no trajeto, corta as avenidas como se estivesse pilotando uma nave no espaço, realmente ele está feliz, seu carro faz um zigue-zague desinteressado que exprime essa felicidade, ele parece um trovão no exato momento em que avança um sinal vermelho e sem nem mesmo perceber atinge uma coisa sólida, que muda de estado físico, agora um pouco sólida, um pouco líquido, são pedaços de carne, são poças de sangue, lá na frente, o rapaz viril segue, feliz como antes. Sérgio enfim se desprende dessas imagens, mas continua com os olhos fixos no jornal com a sensação de que há uma proximidade enorme entre aquelas imagens e ele, uma intimidade perversa. Sérgio se levanta com um pouco de dificuldade do sofá, ele não acredita em jornais, é tudo ficção, mas ele está visivelmente abalado, estica os braços o mais alto que pode para se espreguiçar e percebe, ao olhar para o alto, que as telhas francesas estão completamente úmidas, parecem querer chorar. É o que de fato acontece, as goteiras se intensificam, porque lá fora, a chuva já se transformou em tempestade, que desaba impiedosamente. Uma estranha e vertiginosa sensação corre pelo corpo inteiro de Sérgio, que se deixa jogar mais uma vez sobre o sofá velho e adormecer profundamente. O sono lhe vem como uma imensa rocha sobre a cabeça. Dorme por muito tempo, até despertar. Com seus olhos estranhamente arregalados constata que não experimenta mais a mesma tranqüilidade da manhã. O corte ainda arde fininho na planta do pé, o jornal continua aberto, nem tudo nele é alheio à vida de Sérgio, não mesmo, não aquele rapaz viril, não aquela moça, Fabiana, atravessada ao meio, morta. Sérgio fica sem saber o que fazer, demora um pouco até se decidir, na verdade não há mais nada a ser decidido, consulta o relógio e percebe que já não é mais tão cedo assim, algum evento fez os ponteiros se lançarem numa corrida alucinada, está tarde. A maçaneta da porta finalmente tira Sérgio daquele estado de incerteza, ele observa ansioso pela pessoa que está por entrar, alguma ponta de esperança faz Sérgio pensar em Fabiana cruzando aquela porta, mesmo num caixão há sempre quem espere ver o corpo se levantando milagrosamente. Mas não, é o Che, encharcado pela chuva, sorrindo tímido. Sérgio continua parado, olhando Che se aproximar e estender os braços a ele, envolvê-lo cheio de pêsames, dizer que sente muito e que o funeral é hoje. Sérgio se desprende do corpo de Che, caminha para cama e se cobre com um lençol qualquer, ele não quer acreditar, vai dormir e ver se quando acordar será tudo diferente. Não funcionou antes, quem sabe funcione agora. Ele é poeta, talvez componha um verso que amenize a sua dor, mas já é tarde, lá fora e aqui dentro, já é tarde demais.

domingo, abril 06, 2008

Mais um dos contos do novo livro

A flor de lótus

O cheiro das violetas faz acordar o dia em Sérgio. Isso depois de ter atravessado um certo estado de torpor, típico das manhãs, enquanto o sol, no lado de fora, rastejava lento parede acima, até encontrar o vão por onde penetraria a casa. E se não fossem violetas estas flores? Sérgio constata um tanto decepcionado que é um ignorante em floricultura. Nada pior do que reconhecer a própria insignificância logo na primeira hora do dia. Violetas, margaridas, Gardênias, azaléias, os nomes todos para o inferno, que eram todas flores, e o cheiro, das flores, e simplificado dessa forma Sérgio se sente um pouco melhor. Mas a angústia não o abandona tão facilmente, ele não sabe o que fazer de seu dia, porque não tem o que fazer mesmo, não trabalha, não estuda, não rouba, não mata, nada. O que existe talvez seja apenas uma espera daquilo que nem se pode prever. Sérgio encara um ponto remoto no teto do quarto, não há nesse ponto significado algum, ele é apenas um algo remoto mesmo, poderia ser qualquer ponto do teto, nem Sérgio, na verdade, sabe distinguir o ponto para o qual olha, dessa forma parece que o olhar de Sérgio vê no teto todo pintado de azul uma superfície transparente, e através desta um outro mundo, e com este outras verdades, e com estas outras mentiras. O teto todo pintado de azul, por sua vez, se tivesse olhos, veria, de uma posição privilegiada, todo o corpo de Sérgio estendido sobre a cama, a cara, os lençóis, o travesseiro, tudo isso amarrotado, enrugado, com aparência de algo já muito gasto, na mesinha um livro do qual se tem a impressão que nunca foi aberto, os cabelos de Sérgio parecem com os de uma boneca velha e maltratada, as pontas dos fios se enroscam em grossas espirais, algumas são verdadeiros tufos, naquele quarto só o teto é pintado, azul, Sérgio detesta essa cor, lembra muito a Ana, o resto do cômodo é mal conservado, e é incrível como Sérgio, nada preocupado com higiene pessoal, se funde perfeitamente com a atmosfera daquele quarto, deitado ali, pelos olhos do teto azul, - se os tivesse - Sérgio mais parece um objeto de decoração envelhecendo e se desgastando junto com o quarto e a mobília, só o teto, azul, que Sérgio detesta, resiste, seria uma lembrança?


... mas como não poderia deixar de ser, o despertador toca e parece que tudo vai começar, o corpo de Sérgio já se movimenta, desinteressado, pelo quarto, e estranhamente ele toma o fone do gancho, recebe um sinal, como costumam dizer, então Sérgio toca, com vários de seus dedos, indiscriminadamente, oito teclas, uma gravação surge no fone dizendo que não é possível completar a chamada com o número discado e, tão estranho quanto antes, Sérgio repete o processo, outra vez a gravação diz que o número discado não existe, ele olha a mão para se certificar de que ali não estava resquício de número algum, não, não há tinta de caneta borrada que lembre um número qualquer, então Sérgio segue até o banheiro, tentando enxergar no reflexo do espelho algo que não fosse propriamente um reflexo, mas um destaque, em vermelho, escrito a batom, um número para o qual pudesse ligar, seguido de um eu te amo sempre, mas não, nem ali nem nos bolsos, onde agora Sérgio enfia as mãos com ar desesperado na busca de um pequeno pedaço de papel, mas a senha não existe, então Sérgio disca mais uma vez de maneira aleatória, alguém está sendo chamado no outro lado da linha, esta pessoa se vê intimada a atender, ou melhor, condicionada, como um rato de laboratório em sua jaula levando choques para se alimentar, esta pessoa, como um rato, impulsionada por estímulo e resposta, atende ao chamado, Sérgio se irrita levemente com a rouquidão da voz, talvez esperasse um veludo sonoro, a voz que diz alô do outro lado da linha é rouca e masculina, então Sérgio logo pergunta se a pessoa não se espanta, a voz, aparentemente confusa, pergunta quem fala, pergunta do que se trata, Sérgio apenas repete a questão, a voz não se contenta, não se entrega, há aí um duelo estabelecido, Sérgio insiste, a voz não desiste, daqui a pouco talvez trovejarão palavrões, insultos desbaratados em linguagem binária, viajando em velocidade absurda pelos cabos de fibra ótica que ficam nos esgotos da cidade, Sérgio, antes de dizer ao outro o seu nome, pergunta se esta pessoa, esta voz, não se espanta, a voz se cala, o silêncio assim, ao telefone, tem uma angústia peculiar, então Sérgio tenta desferir um golpe de espada com sua verdade, que atravessaria os ouvidos do outro, Sérgio se indigna, pergunta se o outro não se espanta, o outro está inundado de dúvidas, e se for um trote sobre seqüestros?, e se Bia está agora nas mãos de um maluco qualquer?, o outro, que é Jorge, pergunta qual o motivo daquela ligação, se exalta até, depois de superado o susto, Sérgio não compreende o novo rumo da conversa, ele nem revelou ao outro, a Jorge, sua verdade, a espada desembainhada volta à bainha, Sérgio põe o fone no gancho, Jorge não é um nome estranho, não mesmo, ele já ouviu esse nome em alguma ocasião da qual agora não pode nem consegue se lembrar, isso ficaria para depois, e como tudo aquilo que é deixado para depois, talvez nem chegasse a ser algo, pelo menos é assim que Sérgio pensa, gosta de deixar tudo na iminência do não ser, ele faz absolutamente nada, imerge sempre na lentidão do dia, às vezes, com um relógio nas mãos, conta, doentiamente, os segundos avançados pelo ponteiro, que quando cumpre uma volta completa em torno do eixo faz avançar o minuto num ponteiro distinto, mais lento, claro, então depois, bem depois deste último ponteiro girar em torno do mesmo eixo de antes, badala a hora, numa lentidão as horas passam para Sérgio, ele acredita que o eixo sobre o qual giram os ponteiros é a essência do tempo, por isso fica sempre à espreita do relógio, tentando surpreender o tempo, quem sabe segurar com toda força o ponteiro algoz, quem sabe fazê-lo andar em disparada rumo ao futuro, então Sérgio fica ali, observando ponteiros, assistindo a um conjunto de pequenas engrenagens que ditam o ritmo de sua vida, já lhe disseram que era louco por esse aspecto peculiar de sua personalidade, ele respondeu que o ser humano era louco sobre inúmeros aspectos, soltando uma longa gargalhada depois, bem!, assim ele queria lembrar da situação, não foi bem desse jeito, mas enfim, isso não vem ao caso, Sérgio já quer fazer outra ligação, mais cedo quando acordou, teve vontade de escrever, mas lembrou que não sabia nem o início nem o fim, que só sabia o meio da história que ele queria escrever, julgou que assim de nada adiantaria escrever, então agora, seus dedos, que deveriam estar segurando uma caneta apoiada sobre uma folha e deslizando as formas das palavras, seus dedos agora digitam o dia de seu nascimento, talvez numa busca inconsciente do início, e Sérgio recebe enfim um alô feminino, a maneira como o A, aberto e soante, precede a consoante, o jeito como o L escorre pela língua, o modo como o Ô fechado encerra a palavra, Sérgio acha que pela primeira vez na vida está apaixonado, seu coração assumi uma freqüência alucinada de batidas, suas pernas fraquejam, os olhos pestanejam intermitentes, seu corpo todo amolece diante dessa nova situação, ela repete ao telefone a palavra com a qual fisgou Sérgio, que, como um peixe preso pelo anzol, responde em espasmos silenciosos, Sérgio está tomado de uma emoção imensa, não sabe lidar com tanto sentimento, o amor é um espanto constante, mas que precisa de cuidado para perdurar, ela, do outro lado da linha, cumprindo um protocolo universal das ligações telefônicas, ao perceber que ninguém responde, desliga, Sérgio demora um tempo até perceber que ela não está mais na linha, que na verdade nunca esteve, não existe mais alô, a emoção imensa contida em Sérgio precisa de uma válvula de escape, como se fosse uma panela-de-pressão, ele tenta discar mais uma vez, não se lembra do número, o aparelho não possui rediscagem automática e mesmo se tivesse, Sérgio nem saberia como usar, Sérgio nem mesmo sabe o dia em que nasceu, mais uma vez o início foge de Sérgio, de repente ele pensa em como seria sua vida se tudo não passasse de um conto, em como seria sua morte, até que página a trama duraria, Sérgio é um homem que brinca de inventar, a mulher por quem acabara de se apaixonar seria Ana, esse seria o nome que ele daria a ela, uma menina que só toca piano bem em casa, cabelos estendidos sobre as costas em cachos, filha querida de Lucas, com quem Sérgio teria uma relação difícil, Lucas de quê?, não importa, Lucas, o apóstolo talvez, mas não importa, ela teria brigado com a família inteira para ficar com Sérgio, assim ele contaria aos seus amigos num futuro qualquer, da mulher perfeita que já teve um dia, num alô, e que a flor de lótus o fazia lembrar de Ana, isso se Sérgio tivesse algum amigo, porque eles não existiam, e tal verdade desce rasgando como uma epifania pela goela de Sérgio, logo ele que ousou ferir alguém com sua verdade, qual mesmo?, agora está muito difícil, é tudo muito difícil, tanto que aqueles que se superaram estão como heróis na história, de herói Sérgio não tem nada, e eis que inesperadamente o telefone toca, sem que Sérgio perceba, vem então o segundo toque, igualmente imperceptível, então o terceiro o quarto o quinto o sexto a secretária, Sérgio reconhece a própria voz e se liberta de um estado de torpor que já durava algum tempo, é ele mesmo quem saúda, alguém de lá diz eu sei que você taí e eu sei que você não vai atender mas eu acho sacanagem me dar um bolo desses eu já tô indo embora e não quero que você me procure mais, mas essa voz Sérgio não reconhece, essa voz feminina, será Ana?, meu deus, quem será?, Sérgio não sabe nada, quer repetir a mensagem mas não sabe como mexer na secretária eletrônica, e já neste mesmo momento a campainha anuncia uma visita, Sérgio pega o telefone e disca o número da polícia, atendem, há apenas o ronronar dos carros num engarrafamento qualquer, um burburinho de vozes e passos, a orquestra ditada pelas buzinas dos automóveis, a campainha toca mais uma vez, na verdade duas, seqüencialmente, aparentando irritação, no telefone trêmulo nas mãos de Sérgio, aquele som de ambiente desconhecido permanece o mesmo, só que já se pode distinguir uma música, aliás, somente existe uma música, desconhecida, como o todo de que ela é parte, a campainha toca de novo e socos impacientes acertam a porta, Sérgio se assusta com tudo isso e o telefone lhe cai das mãos, ele se sente indefeso, totalmente desarmado, sua respiração ganha um novo ritmo, difícil, acelerado, ele acredita que está ficando sufocado, o ar lhe falta, enquanto aos socos e pontapés alguém insiste em ser recebido, Sérgio, à beira do delírio, pensa em Ana, vestida de preto, véu sobre o rosto escondendo a tristeza, prostrada à direita de seu caixão, aquele amigos todos para os quais Sérgio inventaria a história de Ana, é um momento tenso para Sérgio, e não se pode exigir tanto senso assim dele, a delicadeza da situação impõe uma lógica que a olho nu é ilógica, mas não, Sérgio não é nada ilógico, é apenas produto da delicadeza da situação a que está submetido, já agora, por sinal, ninguém mais deseja ser recebido à porta, às vezes pode parecer ilógico, mas basta atenção para perceber que não, Sérgio está encolhido num dos cantos da casa, dizem que ele é de câncer, ele fala sonoramente que é de leão, mas ninguém sabe a verdadeira cara do próprio bicho que é, e de repente dos olhos dele brota uma lágrima pequena, bem diferente do sorriso que gostaria de ter estampado no rosto quando amanheceu, ela é tímida mas conserva em si toda a dor que Sérgio pode sentir, a lágrima desce lenta rosto abaixo, deixando no seu rastro uma ferida aberta, trazendo a lembrança triste de que um dia uma borboleta quase entrou na casa, mas preferiu viver ao ar livre, solta no mundo, a lágrima desce lenta tentando se desprender do corpo de seu dono, ela parece desejar o suicídio ao se espatifar no chão e evaporar com o calor ameno da manhã, espantosamente consciente de que seu fim dará também fim à dor, Janaína não vai gostar nada de saber dessa história de falta do que fazer e choro comedido, não vai gostar mesmo, é provável que ridicularize, como ela costuma fazer, esse sentimentalismo todo, dizendo que um homem deve ser forte, que a única coisa com que concorda com seu pai é sobre o ditado que diz homem não chora, então Sérgio não é homem, ou então homem chora sim senhor, Janaína não tem direito nenhum de pensar assim dele, ela, aliás, nem existe, é apenas uma ameaça psicológica que Sérgio criou para si mesmo, as pessoas não são elas mesmas, mas aquilo que o outro pensa delas, talvez se Sérgio procurasse ver Janaína como uma prostituta, subserviente enquanto durar o dinheiro, ou como uma freira, subserviente enquanto durar a fé, ou a hipocrisia, o que dá na mesma, e Sérgio, afinal, quem é?, ele é só mais um homem que não devia mas chora, que ainda está acocorado num canto da casa temeroso das batidas na porta de há pouco e do telefone que já nem toca mias, Sérgio pensa que se olhar a paisagem talvez revigore as forças, ele já leu isso em algum lugar, tem uma mente frágil e é capaz de acreditar piamente em qualquer mentira bem contada, a vida de Sérgio não é nenhuma obra-prima, não, ele nunca foi o rei do baile, não comeu a mais gostosa da turma, nunca foi ele quem apresentou a maconha nas rodinhas de viciados, também não era ele quem fazia as melhores indicações de filmes, nunca lhe foi dado a honra estúpida de ser ouvido por uma platéia, nunca foi o primeiro homem de nenhuma mulher, aliás, nunca teve em sua cama uma mulher que o amasse, talvez por isso vá inventar uma história qualquer sobre Ana, a mulher de sua vida, a flor de lótus, os amigos, por sinal, igualmente invenções, foram todos embora antes que a festa acabasse, deixando para trás toda a sujeira que se desprendeu de seus corpos, e continua tudo ali, na casa de Sérgio, tudo do jeito que eles deixaram, a mente humana é um poço vazio preenchido esporadicamente de falsas esperanças, Sérgio, sabendo disso tudo, sente ainda mais dor, então ele tenta se lembrar da coisa mais linda que já viveu e se confortar com isso, o passado é uma massa como aquelas com as quais as crianças brincam, recebendo a forma desejada, moldando-se e deformando a verdade em nome de um ego ferido ou excitado demais, e afinal, o tempo é relativo, Sérgio pensa que seria engraçado se Einstein tivesse acrescentado na sua teoria; até mesmo a teoria da relatividade é relativa; então, finalmente, no riso ele encontra o esquecimento que queria, ele sente o conforto correr, como se fosse uma substância química, em suas veias, agora o que se pode ver na cara de Sérgio é um largo sorriso, como ele queria pela manhã, mais cedo, ele queria, na verdade, já acordar sorrindo, uma coisa muito insana de se pensar, tão insana que não se sustenta por muito tempo, sempre relativo, já que Sérgio sente escorrer fugaz essa nesga de felicidade, ele é triste, nem sempre o sorriso expressa alegria, pode significar desespero, encobrir a dor, a vergonha, o medo de que tudo permaneça assim, tudo passando frente aos olhos de Sérgio como se a vida não fosse mais que um filme, e a ele não restasse outro papel que não a de expectador, passivamente inserido na própria história, o curioso é que o medo em Sérgio não decorre de nada palpável, pertencente ao mundo concreto, ele não teme ser assaltado em toda esquina que vira, ou de ser esmagado contra um muro por um carro desgovernado qualquer, ele pouco se importa se a bolsa de Nova Iorque quebrar outra vez e levar junto para o abismo as cifras irrisórias de sua conta bancária, Sérgio tem medo é desses fantasmas, dessas presenças que o sentido humano é incapaz de perceber, são rumores que surgem de um lugar desconhecido, trazendo toda uma carga negativa que facilmente se abate sobre Sérgio, são socos e pontapés, chamadas telefônicas, sempre algo, desconhecido, tentando invadir, tentando se enfiar nas entranhas, e talvez ficar assim, como Sérgio está, todo encolhido em posição fetal, choramingando, a respiração emitindo um silvo vergonhoso, talvez assim ele não encontre saída e continue ali, preso, com medo desses fantasmas, mas no entanto esta luta está longe de acabar, ela acontece dentro, lá no fundo de algum fundo de Sérgio, bem no fundo, de onde ele agora precisa sair, escalar as paredes do abismo no qual se vê mergulhado, nem que isso lhe custe as unhas, os dedos em carne-viva na tentativa de emergir a algum sol, nem que isso lhe custe mais um trauma, mas ele precisa sair daquele buraco fundo, e pensar em algo é sempre um subterfúgio, rascunhar a manhã seguinte nos sonhos, imaginar-se sentado a uma mesa farta, frutas tropicais, semi-tropicais, sub-tropicais, sorvete no café da manhã, carne, muita carne, delícias mil, e, claro, pão e vinho, Sérgio acompanhado de nada mais nada menos que Ana, que acabou de se levantar da cama e caminha com um frescor matinal de comercial de margarina até a mesa, seus cabelos resistiram intactos à noite de sono, não se pode nem mesmo imaginar o hálito desagradável que exalam todas as bocas recém acordadas, Ana é quase um anjo dentro daquele seu hobby branco, muitíssimo elegante, puro cetim, quase um vestido longo para as manhãs especiais, os passos não emitem qualquer som, ela parece flutuar pelo caminho, desse modo Sérgio tenta mais uma vez agarrar o conforto de que tanto precisava, é melancólico ver um homem se afundar assim nas suas próprias ilusões, está cego para tudo que há a sua volta, para ele, o tudo que há está lá dentro, onde os fantasmas não entram, onde tudo é uma tênue projeção, uma delicada utopia, que se desfaz bruscamente com as batidas na porta, o telefone toca mais uma vez e Sérgio desperta de seu sonho num grito agudo, agora os socos viraram murros, os pontapés, chutes nervosos, o telefone toca insistente e Sérgio parece experimentar uma espécie de ataque nervoso, seu corpo inteiro se retesa, brilha de um suor frio, mas algo parece que está acontecendo, algo que vai tirá-lo de seu estado, como se um parto estivesse prestes a acontecer, o corpo de Sérgio vai aos poucos perdendo aquela postura de feto, os membros pedem sua rigidez inicial, a ocasião também pode ser comparada a uma borboleta que se liberta do casulo que ela mesma construiu para si, Sérgio é mais uma vez homo erectus, está totalmente de pé, se encaminha até a porta, as batidas continuam, só o telefone parece ter cansado e se calou, as mãos de Sérgio giram as chaves o número de voltas necessárias para que aquela fortaleza se abra ao mundo, parada, diante dele, mais um fantasma, Eva, que entra sem pronunciar uma palavra, se encaminha até o quarto, abre o armário, retira uma grande mala e começa a despejar peças de roupa, primeiro as íntimas, dentro, Sérgio está recostado no umbral, observando aquela mulher apagar daquele recinto todas as suas marcas, uma a uma, Eva, atormentada com a situação, não consegue conter suas lágrimas, nem suas palavras, chama Sérgio de filha da puta, roga duas ou três pragas, interrompe o trabalho para secar o rosto e retoma sua labuta, Sérgio é preenchido de um sentimento egoísta estranho, ele se sente bem ao ver Eva chorando, soluçando, ela também lamenta sua vida, ela também lamenta ter conhecido Sérgio, ela disse, todos tentam se esconder ou se livrar de seus fantasmas, não é apenas Sérgio que precisa escalar, nem que isso custe as unhas dos dedos, um abismo, e agora Eva já não está mais no quarto, ela está na sala, diante da estante de lembranças afetivas, esse é um outro momento delicado, olhar aquele passado entalhado em sorrisos, aquelas fotos enfileiradas em ordem cronológica, que estúpida essa esperança de tentar parar o tempo, aqueles sorrisos que agora só trazem dor, jamais eles acontecerão de novo, foram aprisionados em papel especial, como que condenados a uma maldição, a falsa promessa de eternizar o momento, de estabilizar a felicidade como se fosse uma fórmula manipulada em laboratório, os sorrisos alvos escurecem, há uma cárie especial para os sorrisos das fotografias, quanto mais Eva olha para aquelas poses, mais sente arrependimento por tudo, nem mesmo consegue se lembrar do porque sorrira tanto assim um dia, o que mais dói é ver que no fundo, o sorriso de Fabiana e de Che, seus filhos, suas crias, a razão de seios grandes e flácidos, dói ver que as crianças aparentemente alegres escondem toda tristeza do mundo, Eva se desespera com essa infelicidade toda que está sentindo, é por isso que eles estão ali, um diante do outro, o riso e o pranto, ao mesmo tempo, na mesma Eva, Sérgio parece captar toda essa emoção, seu espírito egoísta se acentua, tem um prazer diabólico em ver Eva naquelas condições, ele sabe que ela nunca o amou, ela sabe que ele sabe disso, Sérgio se sente como a serpente que seduziu e destruiu a mulher e o paraíso, Eva está sendo expulsa pela segunda vez na sua vida do jardim do éden, a casa e tudo mais pertencerá somente a Sérgio, ele vai prepará-la para a chegada de Ana, uma bonita flor de lótus sobre a mesa de centro da sala, a esta altura Eva já está na rua dando partida em seu carro, ligando o limpador de pára-brisas achando que a lágrima é chuva, Sérgio nem mesmo percebe que está sozinho mais uma vez, está afundado numa alucinação, pensa na hora em que Ana vai cruzar aquela porta e, sem desviar um só átimo de segundo o olhar, repetir com sua voz lânguida o alô de mais cedo.

terça-feira, abril 01, 2008

Sobre o último comentário

Estou aqui, numa dessas lan houses, saído da leitura do último comentário. Responder ao que foi exposto, nesse exato instante, pode representar um risco, uma vez que a carga passional pode se acentuar demais nas palavras. No entanto, pouco me importam os riscos, afinal de contas, a minha arrogância (adorei, porque nunca me chamaram de arrogante, já me xingaram de filha da puta até, mas arrogante, nunca... achei bastante solene e formal) não deve permitir a mim um recuo sequer. Não sei dar respostas precisas sobre o que Sérgio vai parecer a cada leitor. Nem tampouco tenho em mim tal curiosidade, nao sofro de egocentrismo a ponto de querer canalizar todas as impressões de cada um dos leitores. Considero legítimo dizer que o personagem é assim ou assado, ou cozido, sei lá. A antítese bobo alegre é intrigante, já que desse estado de espírito (vamos combinar) todos nós fazemos uso numa ou noutra ocasião. Sérgio não perdeu disciplina alguma, ninguém pode se dar a esse duxo, meus caros e inocentes leitores, até mesmo a indisciplina é uma maneira de estar disciplinado. Não há mais espaços, no mundo de hoje, para romantismos, aquele que elege o outro um vagabundo, o faz do alto de sua hipocrisia, porque no seu íntimo, quando recosta a cabeça sobre o travesseiro, ele sabe lá no seu íntimo que nada, ou muito pouco, para ser menos radical, o diferencia do mesmo vagabundo que qualificou. Quanto a escrever mal ou bem, eu prefiro ficar no intermédio, não sou um bom ou um mal escritor, aliás, nem sou escritor, sou penas um cara que escreve (e assina embaixo). Não quero que pensem de mim que sou um bom escritor, essa glória estúpida não me diz nada. Há quem diga que Paulo Coelho e os tratados sociológicos de FHC são ótimos, mas eu prefio Kundera, Pessoa, Dostoievski (será que Raskolnikov era também um vagabundo?), tem quem prefira ciência política, ou a pesquisa da célula tronco, eu, Rubem Fonseca, Caio, Fante e por aí vai. Eu já me libertei da minha própria escravidão, já cortei de vez o cordão umbilical, mas mesmo assim continuo preso, não tenho problema em aceitar isso, talvez eu seja mesmo um péssimo escritor, como quer o crítico anônimo, talvez me aconteça de ser iluminado pela sagrada inspiração, talvez me coloquem em livros, jornais e revistas e tudo que eu disser será usado depois contra mim no tribunal, de tudo que foi dito, só posso aceitar quando dizem que me contradigo, que ora digo uma coisa ora digo outra coisa, nisso tenho de concordar, porque o homem, metonimicamente falando, é a expressão máxima da contradição e que contamina tudo que lhe diz respeito, inclusive os seus textos (faço-me claro?). Além disso, me felicita comunicar que achar mais um sérgio foi realmente um ganho inesperado, já posso até imaginar, o capítulo que sérgio não vai dormir, vai, às três da manhã, sob a máscara do anônimo, tentar aterrorizar, em vão, a vida de um jovem que apenas deseja dividir com os outros a sua ficção...
até breve

sexta-feira, março 21, 2008

As peças fora do lugar

((estou organizando meu terceiro livro (na verade tenho outros em andamento) e aproveito para deixar um dos quatro contos já finalizados; a princípio, terá como nome As múltipla faces da folha, que fala de esquizofrenia e loucura, o que só é perceptível na leitura integral dos textos, mas isoladamente é possível enxergar algum traço de loucura; aos poucos vou publicando os textos aqui; a quem ler, um bom texto))
São dez da manhã e o despertador toca. Vai começar tudo de novo. Sérgio leva mais alguns minutos antes de começar. Se contarmos esse tempo como perdidos, poderíamos dizer que nada começou. Cada um acha uma coisa. Para Sérgio não importa muito. Poucos são aqueles que pensam nisso no momento do ato. Os movimentos são quase mecânicos. Sérgio segue sua rotina. Nunca toma café da manhã. Talvez porque acorde tarde. Cumprimenta Bia, já de avental na cozinha, e ao mesmo tempo se despede dela com gestos. Não raro as rotinas de algumas pessoas se coincidem. Horários, hábitos, vícios, corpos. No elevador ele encontra Eva. Disfarça com certa perspicácia. Ela ausente a ele. Não estão sozinhos, mas para ele é como se fosse. E assim acaba sendo. Ou não. Deixemos isso por conta. Acontece todos os dias quando, exceto fim de semana, claro, ele quase se engasga com a própria saliva quando encontra Eva. Sempre ali, no elevador, na ida e na volta. Térreo. Segue a trama e Sérgio também. Sabe dirigir mas não gosta de assumir volante. Prefere transporte coletivo, olhar os contornos do trajeto, sentir cheiro único das ruas por onde passa, saber chegar, quando for a ocasião, ao ponto de referência de um encontro.

Sérgio é um cara simples, de poucos, mas bons amigos. Clichês à parte. Estudante de biblioteconomia, estagia na nacional daquele país – qual mesmo? – e ainda é cinéfilo. Assiste muito pouco às aulas. Vive junto dos livros e dos filmes. Já leu e viu muita coisa. Nem cabe citar. No Cine Plaza Clássicos se educou em cinema. Tentou até se transferir para o curso mas desistiu. Sérgio desce do ônibus e caminha até a universidade. Na entrada panfletos e adesivos. São as eleições para a reitoria. Não há debates. Apenas bocas e sorrisos com meia dúzia de palavras decoradas às pressas. Hoje, a arte política não consiste em gerir a pólis (essa se gera por si mesma, segundo a lógica de seu mecanismo obscuro e incontrolável), mas em inventar pequenas frases pelas quais o homem político será visto e compreendido, votado nas sondagens, eleito e não eleito. Essas palavras vieram de um livro. Sérgio não se lembra de qual. Ademais a aula já começou. Para Sérgio, claro, ainda não. Ele entra, pedindo licença, fingindo educação, debochado, ao mesmo tempo sorri, senta num canto, liberta o pensamento, transcorrem minutos, responde presente, então ele parte.

Fabiana já o espera. Vão juntos ao bosque do campus. Não são muito comunicativos. Introspectivos, talvez. Fumam mudos. Também mexem muito pouco seus membros, quase um quadro, se visto de um determinado ângulo. Na verdade são um plano longo. São talvez quase palavras. Mas são apenas eles. Sérgio e Fabiana. Fumam mudos, mas juntos. Terminam. Ele saca da bolsa um livro sobre teoria da documentação. Folheia algumas páginas. Percebe então a besteira que ia fazer e abandona o texto. Toma outro nas mãos. Sempre carrega muitos. Agora é Teatro, Bernardo Carvalho. Lê tranqüilo, nenhuma expressão no rosto. Parece dentro da leitura. Seu corpo, inerte, é apenas um indício de que seu espírito está dentro de outra realidade, talvez cruzando uma fronteira com os pais, talvez sendo um polícia qualquer.

Fabiana enfim fala. Enfim alguém fala. Mas ela fala o necessário. Eles vão até a biblioteca. Sérgio lê as notícias no jornal como costuma fazer enquanto Fabiana passeia livre pelas prateleiras de escritores latinos. Jornal: governo em crise, time do coração derrotado, bolsa em baixa, estréia no municipal, best seller internacional, conflitos étnicos et cetera e tal. Prateleiras: histórias de amor, maldição eterna a quem ler estas páginas, ninguém nada nunca, ninguém escreve ao coronel, morangos mofados, eles eram muitos cavalos, tanta coisa, até crime e castigo no lugar errado. A impressão é que Fabiana quase desliza pelo assoalho da biblioteca. Sérgio segue alheio a isso penetrado nos fatos que aparentemente marcam o dia. Só aparentemente mesmo. Cada um tem o seu dia marcado de um jeito bastante particular.

Fabiana fala outra vez, mas pouco, como antes. Eles saem da biblioteca para certamente entrarem em algum outro lugar. A vida é um entra-e-sai constante. É hora do almoço que, como dito, uma hora entra e depois sai; eles comem calados, de bocas fechadas, fingindo educação. Na cabeça de Sérgio uma cena repete: No elevador ele encontra Eva. Disfarça com certa perspicácia. Ela está ausente a ele. A cena pára nesse ponto. Sérgio não se lembra da parte em que ocorre seu pseudo-otimismo, quando se vê só, mas junto dela, Eva. Fabiana encerra a refeição. Então Sérgio desperta do seu devaneio. Vão mais uma vez para o bosque, depois de terem tomado um café ralo de cortesia, e acendem mais um para fumarem. É o digestivo nosso de cada almoço. A despedida acontece. Fabiana fica frustrada mais um dia. Como tem sido em todos.

Sérgio continua sua rotina um pouco atormentado pelas imagens de Eva. Sempre ali, no elevador, na ida e na volta. Mas agora, na biblioteca, no seu estágio, não. Cada elevador é uma lembrança talvez dolorosa, ele geme por dentro, chega o andar da nacional. Janaína é a primeira silhueta branca no meio a escuridão anterior. Olá! Olá! Enfim mais alguém fala. Mas pouco. A folha de ponto ganha um rabisco que nem de perto lembra o nome Sérgio. Seu cotidiano até parece dividido em parágrafos.

No escritório de Janaína alguns assuntos eruditos demais para serem descritos, outros não, se desenrolam. Os dois repartem as rosquinhas e tomam café, agora não ralos, porque possíveis com o dinheiro público. Para Sérgio não importa muito. Poucos são aqueles que pensam nisso no momento do ato. E por enquanto a espera é inevitável. Todos os dias faz como se fosse um aparelho programado. Tempo do papo, tempo do balcão, dar um jeitinho nos livros, ler algo que ainda não está terminado – e que nunca estará realmente –, jogar conversa fora com Che, como é conhecido o zelador em vista de uma tal semelhança física tão somente, admirar a vista privilegiada do prédio, despedir-se de todos, que são pouquíssimos, e partir.

Hora do rush. As ruas são uma massa que se modifica a cada instante. As pessoas parecem cardumes descrevendo, no meio da pressa, formas estranhas, que se vistas de cima, como os peixes, são até bonitas. É difícil identificar Sérgio no meio dessa multidão. Nessas ocasiões, ninguém é apenas um só, é parte de um todo, em conflito, verdade, mas um todo, sem dúvida. Aquele que não tem rumo deve seguir a multidão, há sempre um lugar aonde ir. Para Sérgio o séqüito tem suas companhias. Não raro as rotinas de algumas pessoas se coincidem. Horários, hábitos, vícios, corpos. No ônibus, faz anotações avulsas num bloquinho de papel, descreve Ana, esse nome ele deu para ela, a menina, quinze anos talvez, com quem encontra todos os dias, seios grandes, um dentinho um pouco trepado, charmoso, roupas estilo udigrude, três brincos em cada orelha, fones de ouvido tocando alguma música. Mas Sérgio apenas anota impressões e desce, sem terminar a descrição da menina, três pontos antes, para se sentar em uma mesa ao lado de Jorge, que já terminou a primeira cerveja.

Depois do aperto de mãos e de um abraço meio convencional, os dois dividem a segunda cerveja e ali vão ficar, quase mudos, de tão introspectivos que são, até a quinta ou sexta garrafa, olhando os corpos conhecidos que por ali passam todos os dias, exceto fim de semana, claro. Sérgio nem tem tanta intimidade assim com Sérgio, tem apenas o time de coração em comum. Ele somente aguarda um instante capital de sua ida e volta diária, mas Jorge não precisa saber disso, que é apenas um passatempo, que entre um caça-palavras e ele não existe diferença para Sérgio. A cada momento uma diva, uma musa, uma mulher gostosa, como prefere a maioria, passa em frente ao bar com calça e blusa apertadas e curtas, valorizando curvas e fendas. Não só Sérgio e Jorge, mas sim todos os machos da espécie interrompem suas falas, suas caras e dão lugar a suas taras mais secretas, que por serem assim, não há como revelá-las.

Ali já está acabado, pela primeira vez no dia, Sérgio rouba as horas com os olhos no relógio de outra pessoa, é quase o instante da partida, nem vai ter uma saideira que Sérgio está de saída antes da chegada da última cerveja. Alguns diriam ser isso uma falha de etiqueta, mas para Sérgio não e ele nem se importa muito se é ou não. Dali até o elevador, mais alguns minutos passados da vida.

Na entrada do prédio, Sérgio é questionado sobre a razão de sua visita. Porteiro novo? Então Sérgio explica que é morador. O novo empregado se desculpa e Sérgio nem responde, acelera o passo, pode ter perdido a hora, mas não, o contador de horas do hall indica que ele está adiantado. Bunda e cadeira se encontram. Para Sérgio não é problema esperar, é só o que tem feito a vida toda, esperar alguma coisa, alguma pessoa, esperar o ônibus, a estréia do novo filme de um cineasta badalado, o novo título literário de um escritor marginal, esperar que a espera acabe. O curioso é que Sérgio não tem fantasias, apenas um bloquinho de papel onde talvez anote, sem que ninguém perceba, seus sonhos e suas utopias, mas sobre isso não se pode ter certeza, aliás sobre nada. A hora de agora já não é a mesma de antes, nunca é, talvez só os algarismos se repitam, mas o tempo não é um, dois ou três números, o tempo é gozo.

Ela não vem mais e Sérgio constata, abismado, que sua rotina foi quebrada, as peças fora do lugar, estão perdidas sem que se possa encontrá-las, não há um desfecho que Sérgio esperava, Eva não aparece, não sobe o elevador junto dele, na verdade ninguém sobe, só ele, que chega a pensar em morte, porque está só num lugar onde todos os dias se vê acompanhado, de Eva, dos outros, o andar chega e mais alguns passos à frente, a porta, os olhos de Sérgio brilham além do normal, ele não encontra as chaves, escorre pela parede feito tinta fresca, se senta no chão tentando encontrar o erro daquele dia, não consegue, mas as chaves tilintam em seu bolso, ele nunca as carrega lá, mas hoje sim, ele as levou nele, três voltas na primeira tranca, quatro na segunda, aquele apartamento é uma fortaleza, ele entra, há um silêncio não habitual, Sérgio estranha, percorre os cômodos, não encontra ninguém, apenas Lucas, já deitado e roncando alto, Sérgio vai até a cozinha e constata que não apenas Eva, não apenas as chaves, outra coisa fugiu de seu controle, Bia não deixou seu jantar nas panelas, elas estão limpas e escorrendo o pouco que lhes sobra de água, Sérgio sente uma tontura, deve ser isso, essa sensação de mal-estar, deve ser isso, a ele não resta mais nada, então ele vai até seu quarto, nem tira a roupa, se esparrama na cama e adormece, sem perceber que dos cinco religiosos banhos que costuma tomar por dia, hoje, nem mesmo um.