sábado, abril 29, 2006

No bar

Cheguei
Depositei minhas chaves
O maço já estava amassado
Algumas moedas rodopiavam em torno de si mesmas
Como a terra, a própria terra de moedas
Num assento pousei meu rabo
Trouxeram-me bebidas
Acendi o primeiro
Li um pouco
Reli minhas páginas em branco
Tentava, mas não conseguia
Um sujeito acenou com a cabeça
Fingi não ver
O copo já estava quase vazio
As provas descansavam sobre a mesa
Vozes ressonantes de trás pra frente
Nas costas
No entorno mais frágil de mim
Paguei caro
Dois e vinte
Muito caro
Onde estará?
No leito do sono
Ou no regato do sonho!
Lá vem vindo mais alguém
Estranho
Eles vêm e se vão
E se vão... e se vão
Primeiro intervalo
A cascata de urina
Mais uma
Nunca uma basta
Acendi o segundo
Brasa forte queimava meus pensamentos
De lado a outro
Um ser mitológico
Meio homem meio moto
Zanzavaeziguezagueava
Um cheiro de carne
Eu cheio de fome
Onde estará?
A terra de moedas é tão grande
Chacoalhei minhas chaves
Reli
Algumas páginas eu pulei
De propósito
Fiz gabaritos de sorte
Homero
O frango no espeto
A mesa era verde
O assento vermelho
Quase perpétuo
Onde estará?
No leito do sono
Pensei em sair
Mas desisti
Acendi o terceiro
Amargo acre desgosto
Parafraseei meus planos
Parodiei minhas derrotas
Ridículas
Pedi mais uma
Gelada
No céu havia o céu
Mais nada
Segundo intervalo
No embalo
É amarelo o líquido
Tumulto alarde alvoroço
As provas estavam todas ali
Onde estará?
Sabe-se lá
Sente-se aqui
Sinto-me aqui
Sinto-me lá
Sento-me cá
Paguei caro
Dois e vinte
Tudo em trocados
Sorvi meus sonhos
Lá vem ele mais uma vez
Monstro mitológico
Quero escrever, mas não posso
Preciso viver
Uma das vozes me lembra
Ressonância
Um eco na minha lembrança
Um beijo
Um toque
Um trejeito
Onde estará?
Ah!
Não é só deus que se esquece
Um milagre por favor
Não há motivos
Empunho a caneta
Tomo à frente o papel
Perfuro
E o sangue escorre
Pelos dedos
Pelos medos
Que instante
Que já se foi
Que não é mais
Adeus à terra de moedas
Acendo o quarto
E peço mais uma
Mas antes mesmo
Confesso
Em silêncio
Meus afetos
Onde estará?
Onde será?
Quem a terá?
Por que os gabaritos?
Não são todos iguais?
Guardei-me do mal
Lembro de versos
Mas não converso
Sou mudo no mundo
Imundo
Moribundo
Cessaram as vozes
Paguei caro mesmo
Dois e vinte
Cadê a próxima?
Essa abstração
Mero discurso
Só tenho o agora
Parti
Sei lá pra onde
Mas fui
Olhos estático-lunáticos
Variedade homogênea de si
Disperso
Depois desperto
Não sei se está
Deixo a guia me levar
Na profusão da vida.

quinta-feira, abril 27, 2006

Uma pequena história de como pode ser o amor

Para Carlos Henrique dos Santos e sua indomável...
Colaborou Ana Macarena Suarez

I. crise das vontades e desejos

Há dois dias, Julia tinha retornado de sua viagem à Espanha. Aquele pedaço de terra entre o Mediterrâneo e o Atlântico representou alguma descoberta importante para ela. Até então, desde a sua volta, não viu Pedro. Um jantar marcado para aquela noite seria o evento do reencontro.

O olhar de nostalgia recente talvez entregasse Julia. Uma leve lembrança com sabor ameno e gosto de puchero. E um medo terrível de encontrar Pedro sem saber como dizer a ele...

O relacionamento entre os dois já durava uns cinco anos. Estavam bastante próximos de se tornar uma instituição. O casamento vinha sendo preparado pelas suas famílias à velocidade que as aparências permitiam. Pedro era um bom partido. Formado em Odontologia, consultório próprio... um belo futuro, por mais que o amanhã fosse pura especulação.

Eles eram um casal que se pode chamar de bem encaminhado. Julia havia estudado Artes. A escolha profissional errada, como sempre salientava seu pai, seria compensada pela predileção sensata do noivo.

“Toma aqui, mamãe. Trouxe pra você. Esqueci de entregar e agora, arrumando as coisas, eu encontrei”.
“Brigada, filha! El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha”.
“Esta é uma edição de mais ou menos 1705, exatamente 100 anos depois que Cervantes o publicou pela primeira vez. Arrematei-a num leilão de livros antigos”.
“Nossa, filha! Deve ter custado muito...”
“Que nada! O leiloeiro trapaceou nos lances pra me favorecer na hora das ofertas”

Quando saiu de Madri, no centro da Espanha, Julia cismou de conhecer Toledo, pequena cidade que um dia havia sido capital do Reino de Castilla. Como uma urbe desta era pós-moderna, cheia de influências distintas, formando o hibridismo enquanto característica fundamental do meio e das pessoas, – quase esquizofrênicas – Toledo reunia marcas de inúmeros povos que já a haviam conquistado, ou por ela haviam sido conquistados – não se sabe... a história oficial é só mais um texto.

Em apenas um dia, Julia pode conhecer aquela terra dominada por um passado e história confusos. Banhada pelas águas escuras do Tejo, a cidade-fortaleza parecia se proteger do resto do mundo com suas imensas muralhas: “urbs parva sed loco munita”.

Enquanto caminhava pelas vielas acanhadas e sinuosas da cidade, Pedro sempre vinha à mente de Julia. Ela estava um tanto quanto assustada com a idéia de ter de casar com ele após seu retorno. Sentira dentro de si que apenas o costume dos anos não bastaria para sustentar o matrimônio. Mas estava disposta a fazer a vontade dos pais, sacrificar-se, morrer antes do fim da vida.

Porém, andar por aquelas ruas conduzia Julia a um estado diferente. Entre os prédios pequenos e ancestrais, seu ânimo se reconfortava, sentia um ar de tranqüilidade.

Passeava por sobre os caminhos de paralelepípedo como que a contar cada pedra que seus passos iam seguindo. Um por um. Julia se libertava das suas angústias, das incertezas, dos labirintos que haviam sido construídos dentro dela. Ou pelo menos se esquecia deles. Talvez um pouco embalada pelo tom cambaleante das taças de vinho que tomara numa cantina qualquer daquelas.

“Oi, meu amor! Estou ansioso pra te ver hoje à noite”.
“Logo as horas passam”
“Que você tem feito, Ju?”
“Nada. Tenho separado a roupa suja da viagem pra lavar”
“Você sabe que eu te amo, não sabe?”
“A gente se vê... beijos”
“Passo na tua casa no cair da noite”

Talvez não suportasse a combinação de resultados, talvez fosse incapaz de obedecer aos passos tradicionais de sua família. Começava a se questionar se conseguiria viver a vida inteira portando algumas máscaras ocasionais, sem poder, como em Toledo, estufar o peito e respirar com prazer o combustível adocicado da liberdade. Nem mesmo sabia o que era ser livre, por isso não se empenhava, por isso ainda se perguntava tanto. Tudo estava agora embaralhado. E ainda por cima, sucedia toda aquela história da Espanha, de Toledo e sua catedral gótica.

Julia desligou o telefone com ar evasivo. Começou a constatar que não queria ver Pedro naquele dia, nunca mais. Um desprezo pelo noivo, misturado às frustrações, arrancou dela lágrimas que vinha de suas zonas viscerais. Ela arremessou o corpo contra o colchão já velho, escondeu a cara molhada do mundo. Sentiu uma vergonha imensa diante daquela situação toda.

Levantou-se para olhar a vista da sacada do seu apartamento. Sentiu uma intensa ligação com as nuvens cinzas carregadas que se precipitavam bruscamente ao chão, inundando as valas já saturadas das avenidas. Seu pranto aumentou e ela tinha a sensação de que dos seus olhos vinha a razão para a chuva que caía no lado de fora... dela, do apartamento. Lembrou, assim, do dia em que esteve em Toledo, do instante em que fora surpreendida por uma garoa fina que pendia sobre a sua cabeça, lembrou do cabelo orvalhado de um menino que brincava de esconder-se de si mesmo.

Duas sensações tão distintas. Um mesmo episódio e uma multiplicidade de sentidos. A chuva que afoga refrescando suavemente as dores. A enchente de angústias, frustrações, incertezas paradoxalmente acalentando Julia, saciando a sede. O vinho, as ruas, o Tejo. O quarto, o claustro, o compromisso. Uma Julia mais Julia do que nunca, liberta. Outra, aprisionada, sedenta de se permitir que a vida lhe saltasse dos poros.

“Alô?”
“Oi, amor... pode descer, estou esperando por você...”
“Tá bom... já vou...”

Despediu-se dos pais com o rosto ainda úmido – um tanto amassado – e acionou o elevador. Ela não sabia se havia feito Pedro esperar muito. E toda espera, Julia associava à prisão.

Por que se importar com a espera de Pedro? E o que ela mesma aguardava da vida?

Ao entrar no elevador, um casal de anciãos lhe sorriu. Ela acenou com a cabeça enquanto os observava de soslaio. As rugas ganhavam a atenção de Julia com enormidade. Quando saltou do elevador, despediu-se do ascensorista... despediu-se de Pedro?

II. encanto

Julia estava em frente à catedral gótica de Toledo. Sentiu-se insignificante. Já dentro do templo, a Maja Desnuda de Goya contemplava seu medo, ao mesmo tempo em que a inquiria sobre seus próprios e mais íntimos desejos. Onde estaria aquele leiloeiro? Aquele louco de cabelos longos e olhos oblíquos.

No caminho pelas obras de Goya ainda foi arrebatada pela fome insaciável de Saturno, que de dentro da tela devorava seus filhos, devorava quem os assistia, devorava Julia... primeiro a cabeça, a razão inteira, depois o corpo, a libido e a vontade reprimidas... as mãos daquele deus apertando as entranhas dela... as pontas dos dedos enterradas na carne... dor e amor.

“Hola!”
“Dios mio!”
Julia se assustou.
“De ningún modo... dios de lo tiempo”

O rapaz. O louco leiloeiro que tirara o sono de Julia.

Saíram os dois. Caminhavam em silêncio enquanto tentavam desvendar os pensamentos um do outro. O leiloeiro de livros elogiou o sorriso de Júlia. Ela apenas confirmou a gentileza esticando a pele do rosto, dando lugar aos dentes pequenos, quase de criança, o nariz que se franzia e os olhos apertados. Sentaram-se então à porta de uma adega e pediram o cardápio. Nenhum deles parecia certo do pedido que iriam fazer.

“Contame,quando volvés a tu casa?”
"No sé muy bien, queria quedarme un poco más ..pero si vuelvo me caso"

O leiloeiro voltou seus olhos para as colunas que se erguiam para sustentar as marquises de um prédio à frente. Pensou como seria se aquela marquise não tivesse as tais colunas... em como poderiam se manter paralelas ao chão daquele jeito tão harmônico, numa sincronia que no segundo olhar já se transformaria, no entanto em monotonia. Por que não podiam ser arrebatadas pelo vestíbulo? Enquanto um sustentava o outro, em algumas oportunidades eram agraciados pela sombra.

“No vuelvas, quedate en España”
“No sabés lo que me estás pidiendo”
“Y vos sabes exactamente?”
“Tengo!”
“Si tuvieras,te quedarias”

Ambos se cercaram de censuras. Contiveram as palavras. Entregaram-se apenas aos pensamentos quase solitários, mas que muitas vezes se encontravam ao acaso, assim como acontecera com seus corpos. Porém esse embate de idéias, com forma de fantasia, de devaneios, tornava a situação mais delicada. O leiloeiro se arrefecia com o temor da partida de Júlia. Esta se aquecia enquanto podia naqueles dias em Toledo. O resto de vida depois de seu retorno poderia ser um longo inverno, em que cada folha seca de sua árvore iria aos poucos se desprendendo dela, sem nenhuma chance de ser tornar outra vez uma copa de felicidades e prazeres.

“Entonces andate, volvé, porque nunca viniste... y si voniste, viniste con tán poca fuerza que ni noto tu falta quando te vayas. Tengo mis planes, que puede ser que no funcionen, pero igual los hago de vuelta...”
“Vos no entendés”
“No, Julia, vos sos la que no entendés... o queres otro entendimiento de la situación... siempre tenemos otra salida!”

III. desencanto

Julia tomou o caminho da entrada de serviços. Quando estava já na calçada dos fundos do prédio, olhou em muitas direções, até tomar, nem sabia porque, uma delas. Seu rosto empalidecia a cada passo apressado. Ninguém a entenderia... seu pai, Pedro e nem mesmo sua mãe.

Ela percorreu três quarteirões e certamente não tinha ainda um destino. Onde está essa outra saída que ele me falou? Eram ruas paralelas, perpendiculares, fechadas, sinuosas... mas qual era a referência? Parou em frente a uma loja de vestidos e roupas de traje fino. Admirou-se com um vestido sem decote algum, de cor cinza, alguns detalhes em linhas tracejadas pelo tecido, que parecia ser de seda. Pôs as mãos sobre a vitrine e deixou-se escorregar lentamente até sentar-se no chão, como um cadáver, que nem mesmo era notado pelas pessoas.

Casaram-se alguns meses depois deste dia.

“Já que não pude negar, deixo então a morte nos separar...”

IV. desencanto e encanto

“Y ahora pongo otros livros en remate... preparen sus lances, porque ahora solo vendo al que pagar el mejor precio”

Mas antes mesmo de iniciar o pregão sobre a obra, uma outra mulher já o arrematara.

(Fábio Fonseca - 2006)

domingo, abril 23, 2006

Ensaio sobre a alienação

BEM... UM POUCO DIFERENTE DO QUE TENHO PUBLICADO AQUI, ESSE TEXTO É UMA... É... BEM, DEIXE-ME VER UM ISNTANTE... É... Ô, MÃE, QUE QUE É ISSO AQUI, HEIN??? É... AH, LÊ AÍ E DEPOIS ME DIZ...

Podemos chamar de ensaio. Podemos chamar também de desabafo. Pois aquilo que aqui será escrito talvez não possa ser chamado, ao pé da letra, de ensaio. Tudo que aqui for citado não respeitará nenhuma convenção, não se enquadrará em padrão algum, nem em norma qualquer. O academicismo, na maioria dos casos, tão somente obscurece o pensamento.

Quanto ao caráter, quanto à natureza desse pensamento que pretendemos expor, também estamos avessos a classificações. Seria filosófico, pois? Não se sabe. Fiquemos apenas com esta dúvida. E todas aquelas que por ventura vierem a brotar de todas as leituras possíveis.

Quando considerarmos conveniente, forneceremos as fontes de influência de nosso discurso. Noutras, porém, negligenciaremos, ou por propósito qualquer, ou por simples falha de memória. Além disso, o texto não é outra coisa senão o ponto de encontro de inúmeros discursos, seja atribuído a ele ou não uma autoria que seja.

Até então, nem mesmo tocamos no ponto nevrálgico do debate, ou do desabafo. Discutiremos a tão latente questão da alienação. Esta palavra tão corriqueira. Tão oportuna nos discursos acalorados. E talvez de tão banal, deslocada de seu centro específico. Se é que tal afirmação pode ser feita. Afinal, a palavra é signo ideológico.

Apenas para nos situarmos dentro desta questão complexa, poderíamos discutir, anteriormente, as acepções mais comuns do termo: transferir a outrem; ou quando com o acompanhamento do pronome, endoidecer, enlouquecer, desvirtuar-se; ou ainda afastamento, separação. Sendo assim, se torna tarefa das mais complicadas analisar tal ponto, uma vez que sua dimensão significativa é ampla.

Mas nos chama mais atenção um sentido recente que se pode perceber nas vozes de contestação. E que se associa a outro termo conhecido da academia, e polêmico, é verdade: massa. São ouvidas aos quatro ventos expressões do tipo: as massas alienadas, alienação das massas,... de fato um bicho enorme, tamanha a generalização de tais afirmações.

Quem é a massa? Ou, de que é feita a massa? Bem se sabe que as de bolo são verdadeiras misturas de farinhas, ovos, leite e mais alguns ingredientes. Então são todos eles alienados? E se a massa é realmente alienada, que seria então o recheio do bolo? Como ficam as infinitas coberturas, todas com seus ingredientes específicos?

Como podemos ver, a culinária é uma ciência muito complexa.

Se afirmarmos que a massa está alienada, subentende-se um discurso produzido na terceira pessoa. Ou seja, aquele que fala se distancia daquilo que fala. Ou seja mais uma vez, quem fala não é massa. Será? E se não for, quem seria o quem fala, especificamente. Um super-herói moderno de ideologia deturpada?

Seria então a alienação uma ação involuntária, ou uma fraqueza daqueles que não nasceram predestinados ao senso crítico individual? Seria, talvez, a demonstração mais cabal do estágio de auto-indução descrito por Freud? Quando o intervalo entre a consciência e a subconsciência torna o mundo onírico o mais possível? Será por essa razão que as propagandas publicitárias funcionam tão bem?

Realmente isso aqui não é um ensaio. Não resistiria a uma olhadela de um orientador da academia. Mas isso pouco importa. Pois vamos sustentar a dúvida. Não estamos atrás de uma verdade.

Um sujeito que entra na universidade, por exemplo. Poderíamos tomá-lo como um espécime perfeito da evolução intelectual? Aquele que se liberta da condição de massa e atinge o nível do recheio do bolo? Pois bem. Talvez não. E porque a estatística é “carrasca” nas mãos de quem a manipula, podemos ver nesse seres teoricamente em evolução a prova real e mais assustadora da regressão.

Pensemos na biblioteca, por exemplo, aquele empírico hotel de traças. Até mesmo os que costumam freqüentá-la – referimo-nos agora a pessoas – recebem tal alcunha. Lá se concentram textos, palavras em ordenação, que talvez provoquem a desordem que tanto necessitamos. Que poucas vezes se transformaram em discurso. Permanecerão na inutilidade e esterilidade do texto em hibernação.

O mais comum é que um estudante a visite (a biblioteca) dentro das suas obrigações de pesquisa, alimentadas, em sua maioria, por uma ambição intelectual do professor, e não do aluno. Seria isso um exemplo de alienação? Isto põe a teoria primeira da evolução ideológica em xeque? Talvez.

Concretamente, estes alunos preferem ter em suas cabeças o rap do boldinho e não o caminho da introspecção até se atingir o farol, da Virgínia Woolf; preferem o pagode de sábado à discussão sólida e bem fundamentada da relação entre comunismo, capitalismo, emoção e razão de São Bernardo; preferem ser Sanção, ao invés do burro, de Orwell; preferem o vôo ao espaço de Marcos Pontes que a viagem ao inferno da vida de Álvaro de Campos.

E pasmem, religiosos, preferem até mesmo a taça da copa do mundo, cheia de ouro e glamour, ao humilde santo graal. Nada se torna práxis sem uma dialética. Então, qual seria o papel dos alienados nisso?

Pensamos que isto aqui mais parece um desabafo mesmo; e como todos, este termina sem um desfecho. E o desabafo é uma atitude quase insana, quase enlouquecida, quase endoidecida... quase alienada, não é mesmo?

sexta-feira, abril 14, 2006

Tudo que sempre quis escrever ou todos são idiotas

Tudo que sempre quis escrever ou todos são idiotas

São oito horas da noite. Estou em frente ao computador enquanto penso num conto. As teclas parecem desafiar meus dedos na busca por uma palavra que seja. Acesso a rede mundial de computadores. Tenho agora, virtualmente, o mundo inteiro ao meu dispor; o controle total do planeta que me cabe; na minha infância a bolinha de gude era o globo em miniatura, agora ele possui formato de tela.

Já incluído e inserido digitalmente, confiro recados, envio mensagens, mas o texto em si eu ainda não consigo iniciar. Parece que não, mas em meio a uma série de informações me vejo dentro de O Grande Ditador, com aquela bola pra lá e pra cá, Hitler e seu brinquedo bola, Chaplin e seu brinquedo Hitler... mas texto eu ainda não comecei.

No programa – engraçada essa palavra, não é mesmo? – de relacionamentos, apenas possíveis, leio frases. Transa eh arti, gozr fz parti, engravidr eh modah, axumi o filho q é phoda!! Por que será que se chama programa? Por que está tudo programado? Alguém aí perdeu o chip da dedução óbvia? Que frase maneira. Inspira o inspirável... programa. Que dizer então do texto que não consigo?

Penso na Beth. Que será que Beth está fazendo agora? Acho até que posso responder a minha própria questão. Então por que a fiz? Posso tê-la feito inutilmente! Todo esse palavrório pode não ser necessário. Até pelo fato de que como diz uma outra frase, os alckimistas estão chegando, estão chegando os alckimistas. Puta frase inteligente! E o texto nada! Te cuida, fruto-do-mar!

Levanto, ando, fumo cigarro, coço meu saco, bico um sapato, fico de lado, olho um retrato, coço meu saco, apago o cigarro, ligo o rádio, subo num estrado, me canso, não caio, balaio de gato, estico no prato, esquento o barato! Ih!!! Acho que fiquei resfriado! E o texto não sai!

Tenho que escrever esse raio de conto ainda hoje. Nem que eu tenha que vender minha alma ao diabo. Esse texto sai-sim-sinhô! Mas olha essa frase: nem só de pão o homem pobre viverá, mas também da mortadela barata e do café fraco!!!! Essa frase é blasfêmia, dirão os religiosos. Um despautério herético da parte de um sujeito absorto pelo pecado! Será que eu escrevo conto ou

poesia?
um nó desatado
no exato instante
no melhor dos ângulos

frase: comunicação averbal

dói? dói?
foda-se tua dor
também dói em mim
a tua dor
fodam-se todos nós

poesia ou

Conto. Ainda não está decidido o que escrever. Mas quando exatamente se toma tal decisão? Escrever é tomada de decisão ou decisão não tomada? Apenas a representação de todo e qualquer ato, estado ou sentido que seja. E por que eu devo escrever? Se há razão, por que não me deixam encontrá-la sozinho. Pois aí eu a destruo; e os homens morrerão de frio, porque Prometeu já foi derrotado. E Sócrates era só um amigo imaginário utópico de Platão.

Acaba aqui e vou ficar sem escrever nada mesmo.

quarta-feira, abril 05, 2006

A nuvem

A nuvem

Há pouco tempo tive uma revelação,
fala baixinha,
no fundo sem fundo do ouvido,
tão baixinha
que custa a acreditar que é verdade.

Nem sequer foi a esperança,
que venta fraca
e quase não balança
os fios embolados
do meu cabelo.

Desconfiei,
mas logo percebi
que não se tratava da voz grave
da revolução,
ah, isso também não.

Calei tudo quanto podia,
porque havia me parecido ser o canto
das ninfas,
meu convite
ao prazer eterno... mas...

E eu, na cegueira surda
de não saber o gosto,
me fiz fascinação.
Cada momento
de vida
se redigia
nos versos mais belos,
nas estrofes mais ou menos tortas
da falta de hábito,
nas coletâneas de noites

de amores sem cores
e
ódios sem dores
e
campos sem flores.

Algo se evaporou
em direção ao céu
onde nada se distingue,
nem mesmo as coisas sólidas,
porque não as alcançamos.

Fiquei preso ao solo sem poder voar como queria.

Vez em quando
eu
me arrisco a olhar o céu,
e lá está ela,
a nuvem,
que se desloca e transforma me entorta a cabeça e se vai.

De cores e formas,
variadas,
gotículas esparsas
me pingam na testa,
escorrem pelos olhos,
saciam a sede,
agravam o desejo

e caem no chão.

Há pouco tempo tive uma revelação, só me resta saber...

As sensibilidades poéticas

Sensibilidade

A mais bela Vista
Não posso...
Minhas Retinas não suportam
Tamanho brilho

As Retinas
Dos meus olhos
São ainda virgens...
Inocentemente controladas

Como pode ser a Vista?
O brilho intenso cega
Todas as manhãs
E rouba das minhas retinas
As cores

Ó Vista!
Fundo de tela!
Me liberta desse teu brilho,
Dessa minha espera!

Que minhas Retinas possam
Passear livres no espaço
elas
(entre)
Vista.

Pura meninice
Pensar a Vista sem vida
Vontade de ser vista.

Cansada, a Vista se apaga
Liberta seu ódio
Se esconde
Em raios e trovões

Mais luz...
Minhas Retinas não
Não mais suportam

Estáticas, na fenda,
Caminho entre elas,
Se molham da chuva
... fina ...
ameaça apertar

Num instante só,
como quando se admira
o proibido desejado,
faz-se do nítido o turvo

um dia de lume suave,
outro calamitoso
e os lampejos ferozes
sobre minhas impotentes feridas
Retinas

Então intervenho,
E as abrigo em baixo
De duas marquises...
Escuras... apenas isso....
Onde o brilho de antiga Vista
Se dissipe em se dissipar...

Pelas trevas, puras,
E um pouco duras,
Minhas Retinas sabem ir.

Sensibilidade II


Já não sei dizer
Digo que não.
Meus ouvidos tomados
Indefesos ao extremo.

Quantos distúrbios
A estes ouvidos escravos.
Penetrados ao fundo,
Apunhalados no âmago.

Que vozes cruéis
Esburacam meus pobres
- eu disse pobres -
E desarmados ouvidos.

Tudo, aos meus ouvidos,
É um resumo constante.
Sou dois desgraçados –
Desamparados – ouvidos.

E essa voz que convence,
Incansável elaboradora.
Viaja do cúmulo racional
Ao absurdo retórico da fé.

Não, não suportam
Meus ouvidos chorosos.
Escorre o melado doce
Recuperado pela língua.

Violentados, arregaçados,
Meus ouvidos tão ingratos,
De tanto ódio e desagrados,
Me torturam regados de dor.

Então, não suportando mais,
Estendo a caneta vorazmente
E defendo meus ouvidos
Com a lança de tinta negra.

Neutralizo todos os sons,
Calo tudo e o silêncio.
Sou o próprio vazio
Sinótico absoluto do silêncio.

Apago os ruídos estúpidos
De todas as línguas más.
Impeço os ataques mortais
Que antes causavam pavor.

Desloco pras vozes malditas
Seu sujo discurso fedido.
Entrego mais uma vitória
Aos meus lutadores ouvidos.

Sensibilidade III

Sem emitir som algum
significo interno,
na mente, o mundo.
Minha língua ainda não sabe
discernir ao certo, mas já sabe
que o doce é a superfície
(o que circunscreve)
e o amargo o mais profundo
(penetrante e intenso).

O que salga não toma tempo,
mas diverte como ninguém.
Mas o sabor acre das coisas
se aloja por tempos na língua
(na saliva, no fluido do prazer
e desejo)
e atinge o abismo insondável do córtex.

Também os gostos podem se alterar:
o doce ir a amargo, e este, àquele.
(variabilidade da vida – inconstância)
Temperatura, intensidade, área estimulada...
tudo pode variar sensações distintas.

Se o sabor meu vai da língua à mente,
depende que venha do cérebro à língua de alguém.
(contramão de sonhos)
Se assim não for, não sinto nada...
apenas lembro do gosto instalado
em alguma zona obscura das minhas recordações.

Mas tudo é sabor, gosto, olhar é saboroso,
é paladar, os cheiros são tão vicejantes
quanto a gustação dos amores eternos.
Ouvir é também gostoso.
Salve o paladar, a graça, o espírito de todos os sentidos.
Deglutir a vida em doces amargos momentos.

Sensibilidade IV

Quando me vem o perfume,
Não como o de rosas,
Os olhos cerram a luz, as cores.

O cheiro me traz dor
A do passado murcho
Que exala o aroma do silêncio
A fragrância do não existir mais.

Meu olfato memória me prende
Lá no ontem que não mais hoje,
Que não mais nada possa ser
Além do que já foi antes.

Cheiro das lembranças mais fétidas
Que me atormentam o juízo.
Minhas incertezas sobre o futuro
Que, acho, quer repetir o decorrido.

Então me perco nessa impressão
Olfativa das minhas derrotas.
Emana de mim a essência podre
E doentia dos fracassos de outrora.

E no fim tudo tem cheiro, menos eu,

Menos minha alma, vazia e inodora.