quinta-feira, abril 27, 2006

Uma pequena história de como pode ser o amor

Para Carlos Henrique dos Santos e sua indomável...
Colaborou Ana Macarena Suarez

I. crise das vontades e desejos

Há dois dias, Julia tinha retornado de sua viagem à Espanha. Aquele pedaço de terra entre o Mediterrâneo e o Atlântico representou alguma descoberta importante para ela. Até então, desde a sua volta, não viu Pedro. Um jantar marcado para aquela noite seria o evento do reencontro.

O olhar de nostalgia recente talvez entregasse Julia. Uma leve lembrança com sabor ameno e gosto de puchero. E um medo terrível de encontrar Pedro sem saber como dizer a ele...

O relacionamento entre os dois já durava uns cinco anos. Estavam bastante próximos de se tornar uma instituição. O casamento vinha sendo preparado pelas suas famílias à velocidade que as aparências permitiam. Pedro era um bom partido. Formado em Odontologia, consultório próprio... um belo futuro, por mais que o amanhã fosse pura especulação.

Eles eram um casal que se pode chamar de bem encaminhado. Julia havia estudado Artes. A escolha profissional errada, como sempre salientava seu pai, seria compensada pela predileção sensata do noivo.

“Toma aqui, mamãe. Trouxe pra você. Esqueci de entregar e agora, arrumando as coisas, eu encontrei”.
“Brigada, filha! El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha”.
“Esta é uma edição de mais ou menos 1705, exatamente 100 anos depois que Cervantes o publicou pela primeira vez. Arrematei-a num leilão de livros antigos”.
“Nossa, filha! Deve ter custado muito...”
“Que nada! O leiloeiro trapaceou nos lances pra me favorecer na hora das ofertas”

Quando saiu de Madri, no centro da Espanha, Julia cismou de conhecer Toledo, pequena cidade que um dia havia sido capital do Reino de Castilla. Como uma urbe desta era pós-moderna, cheia de influências distintas, formando o hibridismo enquanto característica fundamental do meio e das pessoas, – quase esquizofrênicas – Toledo reunia marcas de inúmeros povos que já a haviam conquistado, ou por ela haviam sido conquistados – não se sabe... a história oficial é só mais um texto.

Em apenas um dia, Julia pode conhecer aquela terra dominada por um passado e história confusos. Banhada pelas águas escuras do Tejo, a cidade-fortaleza parecia se proteger do resto do mundo com suas imensas muralhas: “urbs parva sed loco munita”.

Enquanto caminhava pelas vielas acanhadas e sinuosas da cidade, Pedro sempre vinha à mente de Julia. Ela estava um tanto quanto assustada com a idéia de ter de casar com ele após seu retorno. Sentira dentro de si que apenas o costume dos anos não bastaria para sustentar o matrimônio. Mas estava disposta a fazer a vontade dos pais, sacrificar-se, morrer antes do fim da vida.

Porém, andar por aquelas ruas conduzia Julia a um estado diferente. Entre os prédios pequenos e ancestrais, seu ânimo se reconfortava, sentia um ar de tranqüilidade.

Passeava por sobre os caminhos de paralelepípedo como que a contar cada pedra que seus passos iam seguindo. Um por um. Julia se libertava das suas angústias, das incertezas, dos labirintos que haviam sido construídos dentro dela. Ou pelo menos se esquecia deles. Talvez um pouco embalada pelo tom cambaleante das taças de vinho que tomara numa cantina qualquer daquelas.

“Oi, meu amor! Estou ansioso pra te ver hoje à noite”.
“Logo as horas passam”
“Que você tem feito, Ju?”
“Nada. Tenho separado a roupa suja da viagem pra lavar”
“Você sabe que eu te amo, não sabe?”
“A gente se vê... beijos”
“Passo na tua casa no cair da noite”

Talvez não suportasse a combinação de resultados, talvez fosse incapaz de obedecer aos passos tradicionais de sua família. Começava a se questionar se conseguiria viver a vida inteira portando algumas máscaras ocasionais, sem poder, como em Toledo, estufar o peito e respirar com prazer o combustível adocicado da liberdade. Nem mesmo sabia o que era ser livre, por isso não se empenhava, por isso ainda se perguntava tanto. Tudo estava agora embaralhado. E ainda por cima, sucedia toda aquela história da Espanha, de Toledo e sua catedral gótica.

Julia desligou o telefone com ar evasivo. Começou a constatar que não queria ver Pedro naquele dia, nunca mais. Um desprezo pelo noivo, misturado às frustrações, arrancou dela lágrimas que vinha de suas zonas viscerais. Ela arremessou o corpo contra o colchão já velho, escondeu a cara molhada do mundo. Sentiu uma vergonha imensa diante daquela situação toda.

Levantou-se para olhar a vista da sacada do seu apartamento. Sentiu uma intensa ligação com as nuvens cinzas carregadas que se precipitavam bruscamente ao chão, inundando as valas já saturadas das avenidas. Seu pranto aumentou e ela tinha a sensação de que dos seus olhos vinha a razão para a chuva que caía no lado de fora... dela, do apartamento. Lembrou, assim, do dia em que esteve em Toledo, do instante em que fora surpreendida por uma garoa fina que pendia sobre a sua cabeça, lembrou do cabelo orvalhado de um menino que brincava de esconder-se de si mesmo.

Duas sensações tão distintas. Um mesmo episódio e uma multiplicidade de sentidos. A chuva que afoga refrescando suavemente as dores. A enchente de angústias, frustrações, incertezas paradoxalmente acalentando Julia, saciando a sede. O vinho, as ruas, o Tejo. O quarto, o claustro, o compromisso. Uma Julia mais Julia do que nunca, liberta. Outra, aprisionada, sedenta de se permitir que a vida lhe saltasse dos poros.

“Alô?”
“Oi, amor... pode descer, estou esperando por você...”
“Tá bom... já vou...”

Despediu-se dos pais com o rosto ainda úmido – um tanto amassado – e acionou o elevador. Ela não sabia se havia feito Pedro esperar muito. E toda espera, Julia associava à prisão.

Por que se importar com a espera de Pedro? E o que ela mesma aguardava da vida?

Ao entrar no elevador, um casal de anciãos lhe sorriu. Ela acenou com a cabeça enquanto os observava de soslaio. As rugas ganhavam a atenção de Julia com enormidade. Quando saltou do elevador, despediu-se do ascensorista... despediu-se de Pedro?

II. encanto

Julia estava em frente à catedral gótica de Toledo. Sentiu-se insignificante. Já dentro do templo, a Maja Desnuda de Goya contemplava seu medo, ao mesmo tempo em que a inquiria sobre seus próprios e mais íntimos desejos. Onde estaria aquele leiloeiro? Aquele louco de cabelos longos e olhos oblíquos.

No caminho pelas obras de Goya ainda foi arrebatada pela fome insaciável de Saturno, que de dentro da tela devorava seus filhos, devorava quem os assistia, devorava Julia... primeiro a cabeça, a razão inteira, depois o corpo, a libido e a vontade reprimidas... as mãos daquele deus apertando as entranhas dela... as pontas dos dedos enterradas na carne... dor e amor.

“Hola!”
“Dios mio!”
Julia se assustou.
“De ningún modo... dios de lo tiempo”

O rapaz. O louco leiloeiro que tirara o sono de Julia.

Saíram os dois. Caminhavam em silêncio enquanto tentavam desvendar os pensamentos um do outro. O leiloeiro de livros elogiou o sorriso de Júlia. Ela apenas confirmou a gentileza esticando a pele do rosto, dando lugar aos dentes pequenos, quase de criança, o nariz que se franzia e os olhos apertados. Sentaram-se então à porta de uma adega e pediram o cardápio. Nenhum deles parecia certo do pedido que iriam fazer.

“Contame,quando volvés a tu casa?”
"No sé muy bien, queria quedarme un poco más ..pero si vuelvo me caso"

O leiloeiro voltou seus olhos para as colunas que se erguiam para sustentar as marquises de um prédio à frente. Pensou como seria se aquela marquise não tivesse as tais colunas... em como poderiam se manter paralelas ao chão daquele jeito tão harmônico, numa sincronia que no segundo olhar já se transformaria, no entanto em monotonia. Por que não podiam ser arrebatadas pelo vestíbulo? Enquanto um sustentava o outro, em algumas oportunidades eram agraciados pela sombra.

“No vuelvas, quedate en España”
“No sabés lo que me estás pidiendo”
“Y vos sabes exactamente?”
“Tengo!”
“Si tuvieras,te quedarias”

Ambos se cercaram de censuras. Contiveram as palavras. Entregaram-se apenas aos pensamentos quase solitários, mas que muitas vezes se encontravam ao acaso, assim como acontecera com seus corpos. Porém esse embate de idéias, com forma de fantasia, de devaneios, tornava a situação mais delicada. O leiloeiro se arrefecia com o temor da partida de Júlia. Esta se aquecia enquanto podia naqueles dias em Toledo. O resto de vida depois de seu retorno poderia ser um longo inverno, em que cada folha seca de sua árvore iria aos poucos se desprendendo dela, sem nenhuma chance de ser tornar outra vez uma copa de felicidades e prazeres.

“Entonces andate, volvé, porque nunca viniste... y si voniste, viniste con tán poca fuerza que ni noto tu falta quando te vayas. Tengo mis planes, que puede ser que no funcionen, pero igual los hago de vuelta...”
“Vos no entendés”
“No, Julia, vos sos la que no entendés... o queres otro entendimiento de la situación... siempre tenemos otra salida!”

III. desencanto

Julia tomou o caminho da entrada de serviços. Quando estava já na calçada dos fundos do prédio, olhou em muitas direções, até tomar, nem sabia porque, uma delas. Seu rosto empalidecia a cada passo apressado. Ninguém a entenderia... seu pai, Pedro e nem mesmo sua mãe.

Ela percorreu três quarteirões e certamente não tinha ainda um destino. Onde está essa outra saída que ele me falou? Eram ruas paralelas, perpendiculares, fechadas, sinuosas... mas qual era a referência? Parou em frente a uma loja de vestidos e roupas de traje fino. Admirou-se com um vestido sem decote algum, de cor cinza, alguns detalhes em linhas tracejadas pelo tecido, que parecia ser de seda. Pôs as mãos sobre a vitrine e deixou-se escorregar lentamente até sentar-se no chão, como um cadáver, que nem mesmo era notado pelas pessoas.

Casaram-se alguns meses depois deste dia.

“Já que não pude negar, deixo então a morte nos separar...”

IV. desencanto e encanto

“Y ahora pongo otros livros en remate... preparen sus lances, porque ahora solo vendo al que pagar el mejor precio”

Mas antes mesmo de iniciar o pregão sobre a obra, uma outra mulher já o arrematara.

(Fábio Fonseca - 2006)

Um comentário:

Anônimo disse...

amor...um sentimento perigoso q ao mesmo tempo q aproxima as pessoas, tbm pode afastar...
amor adolescente... amor antigo... amor paciente... amor possessivo...
há tbm o amor platônico, q acho até q é o meu caso...
bem, quem sabe um dia ainda hei de revelá-lo?
enquanto isso, deixarei apenas meus comentários...